29 maio, 2011

ZAZ Cinema - Repulsa ao Sexo

ZAZ Cinema - Repulsa ao Sexo

Polanski aborda esquizofrenia sem compaixão em Repulsa ao Sexo


Lacanianos são loucos por cinema. O próprio Lacan adoravaEl, de Luis BuÏuel, gostando de exibir o filme, que passou comoO Alucinado no Brasil, para seus discípulos. Considerava-o a abordagem perfeita de um caso de paranóia. Não há como deixar de pensar em Lacan, BuÏuel e El, mas também em Alfred Hitchcock e Psicose, a respeito de Repulsa ao Sexo. O filme de Roman Polanski reestréia amanhã. É um clássico, excepcionalmente bem-feito, mas também coloca problemas que ultrapassam os domínios da estética e ingressam no território da ética. Repulsa ao Sexo é perfeito como abordagem de um caso de esquizofrenia. Mas falta a compaixão que poderia tornar mais emocionante para o espectador o processo de desintegração da personalidade de Carol, a manicure interpretada por Catherine Deneuve. (Não deixa de ser curioso, a propósito, comparar o filme de Polanski com Instituto de Beleza Vênus, de Tonie Marshall, que usa o mesmo cenário numa perspectiva diferente, até mesmo mais fantasiosa.) Se é verdade que o cinema começa e se dilata na epiderme dos atores, o primeiro trabalho de Polanski foi com a bela Catherine. Ele a esvazia de toda expressão e descobre, por trás daquele rosto de anjo, uma dimensão doentia, realçada pelos gestos mecânicos, como o irritante esfregar das mãos ou a maneira de tirar da roupa vestígios de uma sujeira imaginária.

Nesse sentido, Repulsion(título original) prepara o caminho para A Bela da Tarde, que BuÏuel fez em 1967. Terá BuÏuel visto Repulsa ao Sexo? Ninguém nunca fez a pergunta ao mestre espanhol. Pelo menos a resposta nunca apareceu publicada. Já Polanski viu, com certeza, os filmes de BuÏuel. Há ecos de O Anjo Exterminador em Repulsa ao Sexo. E mais - aquele trio de velhinhos deformados que passa com sua música, nas ruas de Londres, talvez seja a imagem mais buÏueliana que BuÏuel não filmou. Pode-se discutir o título brasileiro, que condiciona mal o espectador. Pois embora o sexo seja decisivo e até fundamental como se percebe no desfecho, no olhar da garota no retrato (fique atento para quem ela dirige sua atenção), a repulsa é mais ampla e generalizada. Nos 105 minutos do filme, o espectador acompanha o processo de alheamento de Carol, a forma como ela suprime suas pontes com o mundo e isola-se na doença que a leva ao crime. Alguns críticos gostam de discutir se Repulsa ao Sexo é tão ou mais assustador do que Psicose. Pois Polanski cria o que não deixa de ser um shocker - um filme de terror cujo objetivo deliberado é assustar. Ele mesmo conta isso em sua autobiografia - Roman.

Simultaneamente, o filme dá substância psicológica ao processo vivido por Carol. Não é só o movimento final de câmera que desvenda o segredo da fratura mental da heroína - à maneira do Rosebud de Orson Welles, no desfecho de Cidadão Kane. Passo a passo, degrau a degrau, cenas e situações são armadas para expor, quase clinicamente, o que o desfecho termina iluminando.
Desconcerto - Em 1965, quando o filme surgiu, desconcertou os críticos, ao mesmo tempo que produziu admiração. Muita gente não conseguia entender o cosmopolitismo de Polanski - a trajetória sinuosa que o levou de Varsóvia a Paris e daí a Londres e Hollywood. A carreira iria mudar mais ainda - com novos filmes de gênero, no cinema americano, como o terror de O Bebê de Rosemary e o noir Chinatown (a obra-prima do diretor). O que une todos esses filmes, malgrado as diferenças de produção e até de estilo, é um certo humor (negro) e a atração pela origem do mal.

Carol avança por um corredor - mãos surgem das paredes e percorrem seu corpo; o pretendente a namorado a beija e ela corre a lavar a boca; o operário que ela cruzou na rua surge à noite para violá-la, sucessivamente, e tudo isso alimenta a repulsa da personagem, que termina liberando sua pulsão assassina. Carol é criminosa porque é doente, mas Polanski, ao examiná-la como um entomologista, mantém a distância e não estimula a compaixão do espectador - o que Hitchcock fez no admirável Marnie, as Confissões de uma Ladra, quando o próprio mestre do suspense deu um passo à frente de Psicose. "Marnie" reedita Norman Bates, em versão feminina, com a diferença de que pode ser curada. Um dos grandes momentos do filme (e de toda a obra de Hitchcock) é o grito de Tippi Hedren - "Alguém me ajude, pelo amor de Deus." Essa mesma angústia foi expressa (já que se trata mesmo de uma obra-prima expressionista) por Fritz Lang no clássico M, o Vampiro de Dusseldorf, quando o personagem de Peter Lorre, outro enfermo, é acuado pelo submundo do crime. Ele grita, desesperado, e aquela mão que pousa sobre seu ombro representa a nossa compreensão, enquanto espectadores, do triste, mas verdadeiro, espetáculo da miséria humana.
É essa complexidade que falta em Repulsa ao Sexo. Polanski recorre aos clichês de filmes de horror, mas nem Carol nem o pesadelo em que ela vive no apartamento fechado conseguem ser tão devastadores como o Noah Cross que John Huston criou com tanta genialidade em Chinatown. Polanski mostra ali o mal em sua expressão mais acabada, o que faz daquele filme com Jack Nicholson e Faye Dunaway a experiência mais memorável da carreira do diretor.

Pode-se discutir Repulsa ao Sexo, mas se trata, com certeza, de uma obra impressionante. A maneira como Polanski usa o som (o sino), os atores (Catherine é maravilhosa), os detalhes, enfim - o progressivo apodrecimento do carneiro, as batatas que desenvolvem raízes, as rachaduras nas paredes -, tudo isso revela que se trata de um verdadeiro homem de cinema. Impressiona mais ainda, ou mais do que tudo, a importância que ele atribui ao cenário, transformando o próprio apartamento num personagem. Ele altera suas dimensões reais - expande as peças e os corredores, movimenta paredes e faz largo uso da grande-angular para que o público possa sentir o pleno efeito da visão distorcida de Carol. Pode-se até não gostar do filme, mas é impossível deixar de admirá-lo como cinema. Polanski ainda faria coisas melhores. Era grande e é essa constatação que torna ainda mais decepcionantes seus trabalhos recentes - Lua de Fel e O Último Portal apontam para a decadência do diretor.

(Luiz Carlos Merten/Agência Estado)

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