31 agosto, 2007

Dilema: Ética ou sobrevivência?

Por Solange Pereira Pinto


Olhei o contracheque e nele não reconheci 20 anos de trabalho e 36 anos de estudos. Estava lá, em menos de quatro dígitos, o resultado dos meus investimentos ao longo desta vida de quatro décadas. Acho que mamãe esqueceu de me dizer que vivo num país que não dá a menor bola para o conhecimento e sim para os conhecidos e outras coisinhas.

Tudo bem, escolheu mal, dirão. Ser professora, o grande erro. Acreditar na transformação, na evolução, humana? Terrível equívoco. Optar pelo que se gosta e tem prazer, nos limites dos valores que aprendi em casa? Loucura.

Mas, questionei, procurei, observei para, enfim, reconhecer a desgastada frase: “a culpa é da mãe”. E, é mesmo, pelo menos da minha mãe. Ela ensinou a ética, a honestidade, a cooperação, a solidariedade, o respeito ao próximo, a dignidade, o afeto, o acolhimento, a sinceridade... Pior, ela me ensinou o caminho dos livros, do saber, do questionamento, do senso crítico, do estudo. Minha mãe sempre primou pelo estudo, tanto que até hoje sigo nesse caminho - sem tréguas. Contudo, sair da ignorância pode ter sido minha estupidez... Porém, mamãe não deixou claro que eu viveria a fase adulta em uma época às avessas. Talvez, nem ela soubesse, em sua ingenuidade, o que estava por vir.

Sobreviver seguindo o fluxo da maioria ou seguir princípios éticos? Mais uma escolha! Tomara, que eu seja iluminada para, desta vez, não errar.



Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar

Enquanto a Elisa Lucinda, a poeta, propaga, só de sacanagem, a esperança imortal; minha amiga Fernanda está sofrendo de ética por querer também sua fatia do bolo; a Cacau, por sua vez, padece de desgosto governamental; e eu resolvi ser picareta para não morrer arrastada e presa aos valores que nada significam ou princípios que de nada servem na atualidade.

Hoje, roubarei para alimentar meus filhos, pois roubaram meus direitos constitucionais. Não tenho moradia, não tenho emprego, não tenho estudo.

Minha casa é um lugar de princípios morais e éticos.

Hoje, falsificarei documentos para ganhar uma facilidade aqui outra acolá, pois quando eu mostro mesmo quem sou, não tenho crédito, não sou confiável.

Sou mulher íntegra, idônea.

Hoje, se possível, comprarei diplomas e vagas em concursos, porque preciso ter uma vida digna e ser uma cidadã reconhecida. Mal existo. Não tenho rosto, nem imagem. Sou invisível.

Persigo a sabedoria mais que erudição.

Hoje, furtarei roupas bonitas em lojas, sapatos novos também, porque de chinelos e vestidos rotos não sou respeitada como gente. Não entro em qualquer lugar. Não tenho direito de “ir e vir”. Sou escancaradamente barrada. Estou presa à pobreza.

Vivo de maneira simples e sincera.

Hoje, furarei filas contando dramas inventados para conquistar a piedade e uns vales para o lanche das crianças.

Pratico diariamente a honestidade e a lealdade.

Hoje, fingirei uns desmaios para lucrar com a boa-fé do outro.

Tenho prazer em acolher e ser solidária.

Hoje, atropelada serei por um carro oficial para conseguir uma indenização do Estado. Quem sabe uma aposentadoria por invalidez.

Procuro ser justa, e por isso acredito nos sistemas estatais.

Hoje, farei um gato para puxar energia e água da rua. Cansei de viver no sujo, no frio, no escuro.

Não pego o que não me pertence.

Hoje, invadirei um terreno para construir um barraco de papelão. A gente adoece ao relento. Isso não é vida não.

Pagos meus impostos em dia.

Hoje, sobreviverei para depois voltar a ser aquela que acredita que viver eticamente é um princípio humano, a base da evolução.

Discutindo ética e sobrevivência, outro dia ouvi: “quem não sobrevive não tem vida. Quem não vive não tem como ter princípios, ética ou valores. A vida deve ser o princípio mais valioso do ser humano”.

Hoje, escolherei a estrada mais curta. Não tenho forças para andar por muito tempo. Meus pés estão grossos de percorrer asfaltos em vão. Minhas mãos estão calejadas de carregar pesos que não são somente meus. Meus olhos miravam o horizonte azulado, que os prédios altos de hoje me impedem enxergar. Escolherei a estrada mais rápida, e se tiver algum obstáculo, certamente, derrubarei ou irei pulá-lo.

Eu acredito no ser humano.

Um comentário:

Anônimo disse...

Não quero nem lhe falar do meu "a favor do choque" (vulgo contracheque). TÔ puta.