26 maio, 2007
São Paulo - Cena IV - Clarice - Desmontar para construir
O Museu da Língua Portuguesa abriga em gavetas os segredos de Clarice Lispector. O forte sotaque pernambucano da ucraniana, naturalizada brasileira, espalha-se pelo ar enquanto os olhos se enchem das palavras de sentimentos traduzidos.
Clarice se dizia aberta. Não se escondia. Nem o que sentia, tampouco o que pensava. Escrever lhe mantinha viva para revelar paradoxos. Tinha por metas "escrever sem prêmio, abolir a crítica que seca fundo, copiar as páginas soltas de anotações"... O hermetismo de seus textos não lhe faria popular, pensava Clarice e completava "eu compreendo o que eu escrevo".
Passear por seus escritos aproximou-me do mito. Ela se tornou humana. "Igual". Escolhia o livro pelos títulos e não pelo autor, lia de tudo. Errava ortografia. Sentia-se isolada por carregar o rótulo de escritora. Já rasgou conto, de um autor x, que "não terminava nunca mais". Fumava. Era divertida e bem-humorada. A doença a entristeceu.
Clarice foi pura filosofia.
O eco das frases perpetuaram até eu chegar em Brasília. A estrela se desconstruia para construir. O desmonte era necessário. "Um corpo só ensina a ser mortal". "O cão é tão livre, porque ele é o mistério vivo que não se indaga".
Entre mistério, vida, ser mortal ou livre, a hora da mudança havia chegado. Aquela mudança de casa mesmo. De móveis. De lugares. De coisas. De poeira estagnada. De encardidos. De paredes marcadas. De pregos fincados. De vestes penduradas. De sonhos engavetados. De vida inadiável.
Clarice falou em meus ouvidos que "as explicações não são necessárias". Dei o passo. Grande demais, talvez. Mas, algo em mim insinua que conseguirei.
"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."
E nisso se faz meu negrito "quero desbrochar de um modo ou de outro".
Clarice é indagação. Dúvida e coragem. Eu também.
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Atenção ao Sábado
por Clarice Lispector
Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas.
No sábado é que as formigas subiam pela pedra.
Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho.
De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento sábado era a rosa de nossa semana.
Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?
No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde.
Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais.
Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.
Domingo de manhã também é a rosa da semana.
Não é propriamente rosa que eu quero dizer.
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