04 abril, 2009

Psicanalista: ganância gera mau humor do mercado

por Diego Salmen


Dia após dia, economistas dos quatros cantos do planeta se debruçam para tentar entender os motivos que geraram a atual crise no sistema financeiro mundial. Motivos e conseqüências. Por ora, ao que parece, tateiam no escuro: os mercados continuam oscilando, e ninguém arrisca um palpite sobre até quando a tormenta se estenderá. Estaria o discurso lógico e matemático também em crise, desta vez existencial?

A economia no divã.

Num esforço para compreender melhor os (maus) humores do Mercado, Terra Magazine conversa com a psicanalista e especialista em psicologia econômica Vera Rita de Mello Ferreira, autora do primeiro livro sobre o tema no Brasil (Psicologia Econômica - Estudo do comportamento econômico e da tomada de decisão).

- Enquanto a Bolsa cresce as pessoas tendem a afastar da consciência a percepção de que existe risco, de que não há segurança absoluta. Quando começa a cair, essa percepção volta com muita força, e daí parece um fantasma, um horror, uma coisa monstruosa a que você não vai sobreviver.

Vera também é representante do IAREP (International Association for Research in Economic Psychology) no país, além de ser coordenadora-adjunta e professora do curso "Psicanálise e Psicologia Econômica", na PUC-SP (Pontífica Universidade Católica de São Paulo).

A especialista lembra que a economia, apesar do amontoado de números e estatísticas, baseia-se no comportamento dos seres humanos. Estes, por sua vez, são movidos a emoções - o que ajuda a delinear um quadro de pouca racionalidade no mundo financeiro.

Isto posto, como se comportarão os investidores daqui para frente?

- A gente chama de falácia do apostador. Ele está lá no cassino perdendo, perdendo e perdendo. Ele pára de jogar e vai dormir? Não. Ele fica lá para ver se recupera.

Leia a seguir a entrevista com Vera Rita de Mello Ferreira:

Terra Magazine - Nós estamos vendo uma enorme oscilação nas Bolsas, e esse movimento muitas vezes é baseado em expectativas, e não em dados concretos. Existe uma histeria nesse momento vivido pela economia mundial?
Vera Ferreira - É um momento de pânico que nós estamos vivendo, um crash. Isso acontece regularmente depois do estouro de uma bolha. Em outras palavras: quando a bolha se forma, existe uma contaminação desse crença de que vai ser fácil ganhar dinheiro para sempre, que está tudo perfeito e de que ela não vai estourar jamais. De que é só deixar o dinheiro lá e não se preocupar. As pessoas nesse momento esquecem que Bolsa envolve risco - e é justamente por isso que ela oferece um retorno muito maior que outros investimentos conservadores. Elas vão sendo contagiadas por esse espírito de manada. Essas pessoas, quando começa a haver essas instabilidades que sempre existem, são as que ficam mais preocupadas, porque provalvemente acabarão perdendo dinheiro mesmo: elas entraram na alta e querem se desfazer dos papéis na baixa. Isso é o oposto do que todo mundo fala nas finanças. Quando a Bolsa está em alta, as pessoas querem sempre ganhar mais e mais e mais. E às vezes acabam deixando um percentual maior de seus recursos na Bolsa sem perceber que estão fazendo isso. Então, quando vem o tombo, o susto é muito maior, porque uma parcela maior do patrimônio está perdendo valor rapidamente.

Do ponto de vista psicológico, o que explica essa atração dos investidores pelo risco em um mercado que é, em grande medida, virtual? E, também, como explicar a reação quando há esse momento de ruptura?
As duas coisas estão interligadas. Para começar, existe a voracidade. As pessoas sempre querem ganhar mais, mais e mais. E se for aparentemente fácil o jeito de se ganhar, como parece ser (no mercado financeiro), isso acaba atraindo muito as pessoas, sem dúvida. Agora, enquanto a Bolsa cresce as pessoas tendem a afastar da consciência a percepção de que existe risco, de que não há segurança absoluta e até mesmo que eles próprios podem correr risco ao alocar uma parte tão grande de seus recursos ali, se for esse o caso. Quando começa a cair, essa percepção volta com muita força, toda força que você havia usado para afastar ela da sua consciência, como uma mola, e daí parece um fantasma, um horror, uma coisa monstruosa a que ela não vai sobreviver. E tem mais um fator aí.

Qual?
A psicologia econômica já pôde estudar em diversas situações experimentais que, quando as perspectivas são de perda, as pessoas, muitas vezes, acabam abraçando o risco muito mais do que fariam em situações normais. Então quando a pessoa está perdendo, ela vai perder em relação a um pico virtual. A maioria não vai nem fazer um cálculo para ver o quanto realmente está perdendo, se é que está perdendo em relação ao aporte inicial que ela havia feito.

Até porque a perda só se concretiza quando o prejuízo é realizado.
Exatamente, assim como o ganho. Enquanto isso é tudo virtual. Muita gente está se desfazendo dos papéis, tanto que eles estão caindo. Isso mostra que muita gente está realizando perdas também. A pessoa fica naquela dúvida: eu vendo agora ou espero? Se ela, por exemplo, precisar do dinheiro no curto prazo, já não deveria ter entrado na Bolsa se for esse o horizonte temporal... Ela pensa: 'não, vou esperar mais um pouco para ver se volta e eu consiga recuperar minhas perdas'.

Seria algo como: "já está ruim mesmo, então vou pagar para ver se vai piorar ou se melhora um pouco"?
É, mais ou menos. A gente chama de falácia do apostador. Ele está lá no cassino perdendo, perdendo e perdendo. Ele pára de jogar e vai dormir? Não. Ele fica lá para ver se recupera. Só que isso não acontece. Normalmente, continua perdendo mesmo. Se a pessoa pensa no longo prazo, então deixa o dinheiro lá. Vai fazer o quê com ele agora? Muita gente não pensa nisso, só pensa em tentar se livrar do mal-estar da perda. Não é que a gente tenha sempre aversão ao risco; a gente tem aversão à perda sempre. Perder ninguém quer. Então ao tentar evitar uma perda, as pessoas acabam correndo mais riscos.

A senhora fala em perdas. É possível fazer uma analogia entre as perdas no mercado financeiro e as perdas e traumas vividas pelas pessoas no dia-a-dia? O mecanismo é semelhante?
Sim, sim. Todo mundo odeia perder - a não ser que seja peso (risos). O problema é que nós valorizamos qualquer coisa que já tenhamos, porque é nosso, e não queremos nem pensar na possibilidade de ficar sem aquilo, ou mesmo sem o sentimento ou a pessoa, como perder o namorado, etc. Então a frustração, já entrando pelo lado da psicanálise, é o que nos coloca mais à prova. Porque nós fazemos o diabo a quatro para evitar sentimentos de frustração. E a frustração em relação ao plano que você tinha feito, "vou ficar milionário em 15 minutos", de repente... De repente coisa nenhuma, aliás: já se fala em estouro da bolha há mais de ano. A única coisa que não estava prevista era o momento exato que a catástrofe iria acontecer. Quando o Robert Shiller, autor do livro Exuberância Irracional, sobre a Bolha da Internet, esteve no Brasil, perguntei a ele: "O senhor acha que as pessoas estão aprendendo mais com essas experiência de estouro de bolha?". A resposta dele foi: "eu sou cético".

É possível, com base nesse perfil psicológico, ter uma previsão de como os agentes econômicos vão agir daqui em diante? E em que medida uma expectativa ruim pode, por si só, resultar em novos problemas para os mercados?
Existem emoções guiando todos os nossos comportamentos. Isso é o que a psicanálise diz há mais de 100 anos, e é o que a psicologia econômica está começando a dizer também. Não existe nenhum comportamento, pensamento ou decisão humana que não esteja fundamentada em raízes emocionais. Isso está presente o tempo inteiro. Acontece que, quando as coisas estão aparentemente dando certo, ninguém se lembra disso. Todo mundo tende a atribuir a mecanismos maravilhosos e mecanismos perfeitos, como que "agora o mercado está 'super-equilibrado'". Tudo balela. Basta aparecer uma turbulência como essa, entendida como uma espécie de janela epistemológica para entender o que está acontecendo, que aparece em toda a sua crueza como nós somos movidos pelas emoções. Antes, a emoção da ganância, da voracidade. Se pedia para alguém explicar essa contabilidade mirabolante dos bancos norte-americanos, mas ninguém conseguia. Quem queria esmiuçar isso àquela hora? Ninguém; todo mundo quer continuar ganhando dinheiro acreditando que vai durar por toda a eternidade. Quando essas expectativas são frustradas, aí todo mundo pára. Quer dizer: na hora em que está tudo bem, as pessoas não estão interessadas (em entender o problema).

Há um discurso muito frio e matemático vigente hoje em dia para explicar a economia, mas há quem defenda que ela é uma ciência humana com componentes que não são racionais...
Sem dúvida. Quem faz a economia são os agentes econômicos, que são seres humanos. Seres humanos são constituídos como? Imperfeitamente, com uma série de limitações, um monte de precariedades e fundamentados em um funcionamento emocional, que não segue a lógica formal. Ele segue a 'psico-lógica'. Essas decisões não são nada consistentes. Minha frase de cabeceira é a seguinte: "A razão é escrava da emoção, e existe para racionalizar a experiência emocional". Em outras palavras, nós podemos fazer de conta que é tudo racional, tudo lógico. Mas não é. Arrumar desculpa, justificativa é a coisa mais fácil que tem. Até uma criança de seis anos pega com a boca na butija roubando doce dá um monte de explicações.

Essa tentativa frustrada de explicar racionalmente a crise explica de alguma maneira o desespero do mercado em não conseguir uma solução para ela?
Sim, sim. Tem até uma piada: "Se faz uma previsão. Ela está errada. Na semana seguinte, (o autor da previsão) está dando uma palestra sobre isso". Cada vez mais nós vemos que alguns economistas já incluem essas variáveis psicológicas nas suas análises. E é evidente que isso ter que ser feito. Em 2002, o Daniel Kahneman, psicólogo econômico, ganhou o Prêmio Nobel de Economia. Em 1978, um outro pesquisador, chamado Herbert Simon, já tinha ganho também. Ele tinha formação em psicologia e economia. Não teve muita repercussão porque, naquele momento, havia a onda de teorias de liberalização dos mercados, ninguém queria saber, porque "os mercados são eficientes"....

...era o começo do "fim da história", do Francis Fukuyama...
É, que não é fim, né? Isso que nós estamos vendo agora já se repetiu. Claro que, agora, há alguns fatores que são um pouco diferentes. Mercado globalizado como nunca houve, o peso da China na economia mundial, que ainda é incerto, tem a questão do excesso de dólares (na China) intocados. Aliás, essa subida do dólar é muito curiosa.

Por quê?
O mundo está querendo comprar dólares no momento em que a economia que sustenta o dólar está derretendo. Então, dá uma impressão - e isso é uma hipótese especulativa, inclusive - de que há uma espécie de "ancoragem". Quer dizer, as pessoas tradicionalmente sempre correram para o dólar, e não estão parando para pensar. Elas estão correndo para o dólar no piloto automático. Me dá essa impressão.

E elas podem, digamos, vir a "quebrar a cara" novamente?
Eu acho que não vai (reduzir a cotação do dólar) no curto prazo. O pessoal fala que vai viajar, não sabe se compra dólar. É melhor comprar, porque pelo que a gente está vendo, pelo menos nessa semana... Se bem que essas coisas são muito rápidas. Eu fui a Roma no final de agosto, e recebi o Financial Times no avião. Parecia que eu tinha ido a outro planeta, porque lá a crise já estava completamente decretada. E aqui não. Aqui estava "ó, que alegria, tudo de bom".

Esse é um aspecto curioso. O presidente Lula costuma dizer que a crise não vai atingir o país. A despeito do discurso político, isso também tem um efeito psicologicamente tranqüilizador para o país? Isso é importante para induzir a um certo comportamento a economia do país?
Mas não está adiantando, né?

E se ele chegar e disser: "A coisa está ruim, vamos todos correr para o banco"...
Acho que isso não (deve ser feito). Mas como eu sou partidária do contato com a realidade no maior grau possível, eu acho que ficar com otimismo excessivo, que é o que alimenta bolhas - seja na economia ou na política -, eu acho que não funciona.

Ele dizia que não iria afetar, mas hoje já diz que pode afetar um pouco, há uma mudança gradual no discurso...
É. É complicado porque a força do boca-a-boca é muito grande. Eu estudei, do ponto de vista da psicanálise e da psicologia econômica, o que aconteceu aqui em 2002, durante a campanha presidencial. Foi um problema local, mas foi uma loucura. O risco-país quase bateu em 2.500 pontos, o dólar quase bateu em R$ 4. As agências de risco e a imprensa internacional diziam que em outubro daquele ano o Brasil estaria quebrado. Claro, essas coisas acabavam influenciando mais o mercado do que o (ex-presidente) Fernando Henrique e o (ex-presidente do Banco Central) Armínio Fraga dizendo que estava tudo tranqüilo e que os fundamentos da economia eram sólidos. É complicado saber como as informações vão chegar à população porque a realidade é percebida por cada um à sua maneira. Todo mundo enviesa para um lado ou para o outro. O fato de você dar determinadas informações não significa que as pessoas vão captar essas informações. Elas podem captar o oposto.

Você havia perguntado se o pânico não se realimenta. Sim, nós vivemos isso no período da inflação. Era exatamente isso. As pessoas achavam que o preço ia subir, então começavam a subir o preço. Porque depois subiria, e é claro que depois subia mesmo, de verdade. É muito fácil, sim, você alimentar uma espiral ascendente e é muito mais complicado você chamar as pessoas à razão. Porque a gente funciona, na maior parte do tempo, de um jeito primitivo e baseado em emoções.

Voltando um pouco no noticiário, o pacote de US$ 700 bilhões aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos, pelo seu próprio valor, vultuosíssimo, deveria ter, em certa medida, um efeito placebo sobre o mercado?
Depende de como o mercado perceber isso (o pacote). Pelo jeito, não está percebendo de uma forma muito otimista, não. O efeito placebo é muito poderoso, as pessoas podem realmente se sentir melhor só porque tomaram o placebo, se acreditaram que não é placebo. Então, eu não chamaria de efeito placebo. Eu acho que aí tem que ver como o mercado vai captar essa informação e se vai acreditar que é a solução. Por enquanto não está colando, não. Até porque o rombo de verdade... Eu já ouvi US$ 3,5 trilhões, US$ 13 trilhões... As pessoas nem sabem direito o que quer dizer isso, mas começam um a olhar para o outro: "você acredita? Está tudo perdido! Tudo perdido!". Aí pronto. É fogo no mato. Todo mundo acredita que está tudo perdido mesmo. Para recompor isso, vai demorar.

Terra Magazine

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