26 abril, 2009

Aborto, corpo, poder e saúde pública

por Solange Pereira Pinto

Desde o movimento feminista, o papel da mulher (e do homem) tem se reconfigurado. Por estarmos na era tecnológica e de ampla comunicação e mídias, isso se faz – aparentemente – com maior rapidez. A nova visão de mundo e as necessidades das mulheres derrubaram mitos e tem erguido diversas formas de relacionamento com o outro e com a sociedade, de tal forma que novos comportamentos e posturas podem sim influenciar aspectos da saúde pública.

O aborto, por exemplo, tem se mostrado um tema relevante para a saúde da mulher, uma vez que aquelas que decidem se submeter a essa intervenção não possuem o respaldo técnico da medicina, exceto os poucos casos previstos em lei. Mulheres sem condições financeiras e mais vulneráveis acabam por colocar a própria vida em risco ao tentarem abortar. Ainda que em nosso país o aborto seja proibido, tal fator não impede às mulheres que de fato se vejam em certas situações – limite ou não (por elas julgadas assim) – tentem recorrer a essa prática.

“Abortar” não pode mais ser tratado como um assunto apartado do contexto cultural, plural, social e globalizado em que a humanidade vive neste século XXI. Os tempos mudaram e têm mudado ainda mais. Hoje, o domínio que a mulher pretende dar ao seu corpo é muito maior do que em tempos atrás. Hoje, de modo geral, a mulher não aceita mais que seu corpo pertença ao domínio de outrem, seja esse outro a Igreja, o marido, o pai, o Estado, a Lei. Ou, ainda, ao masculino e suas formas de representação. A mulher quer dispor do seu corpo como pertencente ao seu domínio próprio (autonomia) e integrado ao seu sujeito – ser mulher, com seus valores e subjetividades. Aliadas a elas estão a camisinha feminina, a pílula do dia seguinte, o DIU, a pílula anticoncepcional. E o aborto...

O problema torna-se ainda mais grave, pois, como analisam os pesquisadores, o abortamento inseguro cria um ambiente ameaçador, de violência psicológica e de culpabilidade que leva muitas mulheres a apresentarem sintomas de depressão, ansiedade, insônia e arrependimento da escolha realizada. “O problema da gravidez não desejada deve ser enfrentado a partir de políticas públicas que reconheçam os direitos humanos reprodutivos das mulheres, que incluam os homens nessas políticas e criem nos municípios brasileiros com ações de saúde a cultura de ações de educação sexual e de atenção à anticoncepção”.

Por outro lado, interessante é notar que, contemporaneamente, podemos fazer uma série de mutilações corporais (tatuagens, piercings, silicones, próteses penianas, redução de estômago, retirada de sisos, retirada de amídalas, doação de rins, plásticas estéticas de todo tipo de órgão, amputações, depilações, escarificação e até implante de orelha no braço como vi recentemente e outras formas de bodymodification). Isso significa que a cultura do corpo tem tomado outras dimensões em nossa época. E a mulher está integrada a esse fluxo.

Segundo Domingues , o corpo “é produto e produtor do meio, nele estão inscritas as marcas bio-histórico-culturais de cada sociedade. É preciso compreender que o corpo tem uma história, é dotado de linguagem, por isso, fala e exprime seus anseios de forma bastante significativa”.

Isso pode sem dúvida gerar tensões e discussões sobre ética médica, humana, estética etc. Mas como o aborto e o papel da mulher entram nesta polêmica?

A sociedade, também, tem mudado seu conceito de reprodução biológica e social. O modelo familiar – mulher, marido, filhos – toma novas formas a partir das uniões homossexuais, das construções familiares híbridas com filhos de vários casamentos, famílias só de mulheres com avós participantes. Ou seja, a própria definição de família mudou.

Nesse sentido, a mulher vem procurando outras formas de reprodução e planejamento familiar em razão das novas tecnologias e nova visão de mundo, numa “pós-modernidade líquida, uma realidade ambígua, multiforme”, como definiu o sociólogo polonês Zygmunt Bauman e por que não dizer “descartável”.

De um lado, os métodos de reprodução assistida, inseminação artificial, proveta, barriga de aluguel, banco de esperma estão disponíveis (em maior ou menor grau) para aquelas mulheres que usam de todos os meios para atingir seu fim: engravidar.

De outro lado, resta a clandestinidade das agulhas de tricô e ingestão desmedida de Citotec. Algumas mulheres vêem a gestação como uma “invasão” de seu corpo. Outras que engravidaram “inconscientemente” quando estavam drogadas, alcoolizadas. Ou aquelas que já têm tantos filhos e sem planejamento familiar não querem mais uma gestação. São muitas as questões e conflitos que pairam nas cabeças das mulheres que optam por vários meios perigosos para se atingir um único fim: abortar.

O filósofo francês Jean-François Lyotard considerou a pós-modernidade como um tempo em que a ciência não pode ser considerada como a fonte da verdade. Se assim estamos, não há mais que se falar em condutas únicas. Por isso, o importante papel da bioética para colocar em discussão a ética da vida e as conseqüências de certas posturas para a humanidade. Discutir o que é vida, onde ela começa e quando ela termina são pautas da agenda atual.

Para tantos questionamentos, surgem infinitas teorias. “As técnicas desempenham importante papel na constituição e manutenção da sociedade do controle. Os instrumentais refinados de comunicação e informação, resultantes da terceira revolução tecnológica, enraizam-se nas subjetividades, produzem novos desejos e sensações – o pós-humano. Sobre essa base, emerge uma nova tecnologia do poder, o biopoder”, analisa Braga e Vlach

A mulher ter “direito ao aborto” é a meu ver um assunto não somente relacionado ao conceito de vida ou não do embrião/feto, mas do domínio do corpo da mulher por ela mesma. É também uma questão de poder. Há por trás do aborto muito mais subjetividades do que simplesmente “eliminar uma gravidez”.

Na sua origem, o poder biotécnico disciplinador identificado por Foucault como a forma caracteristicamente moderna do poder estava baseada em duas formas principais: “a anátomo-política do corpo humano, centrada no corpo como máquina útil e dócil, que pode ser adestrada, ampliada em suas aptidões e ‘extorquida em suas forças’ e a biopolítica das populações, centrada no ‘corpo-espécie regulável’ do ponto de vista da natalidade, mortalidade, nível de saúde e duração da vida” (Foucault, 1990, p.131).

Por fim, longe de esgotar a discussão, engravidar e abortar são questões de saúde pública que tem a mulher como protagonista e passam pela noção de poder sobre o corpo feminino.

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