17 setembro, 2008

Inventário do mundo: Arthur Bispo do Rosário e Peter Greenaway









por Maria Esther Maciel



Toda ordem é precisamente uma situação oscilante à beira do precipício.
Walter Benjamin




Aproximar artistas de contextos radicalmente distintos e com histórias de vida não menos dissonantes não deixa de ser um exercício de imaginação. Sobretudo quando não há pontos de interseção entre suas trajetórias criativas, nem evidência de qualquer diálogo explícito entre eles que possa justificar possíveis afinidades. Este é o caso da aproximação que tentarei estabelecer entre o artista brasileiro Arthur Bispo do Rosário e o cineasta britânico Peter Greenaway, à luz de alguns escritos de Jorge Luis Borges.

Advindos de culturas inteiramente diversas, criando a partir de condições sociais e de motivações estéticas contrastantes, Bispo e Greenaway encontram-se, entretanto, no mesmo apreço pelas taxonomias e enumerações impossíveis, compartilhando uma certa cumplicidade em relação ao que Borges chamou de "la tarea de dibujar el mundo".


Não foi à toa que Greenaway (foto), em seu primeiro contato com a obra de Bispo, em agosto de 1998, quando esteve no Rio de Janeiro para a exibição da ópera "100 Objetos para Representar o Mundo", reconheceu as afinidades de seu próprio trabalho com o do artista brasileiro – este um ex-pugilista, ex-marinheiro e ex-empregado doméstico, negro, psicótico, nascido em 1909. "Ele é mais obsessivo do que eu; a obsessão dele é infinita" – admitiu Greenaway – à medida que percorria o vasto acervo dos trabalhos de Bispo, composto de quase mil peças criadas ao longo de cinqüenta anos de confinamento do artista em uma instituição psiquiátrica.

Essas peças, que vão desde objetos avulsos, como navios de madeiras ou uma roda de bicicleta, até assemblages, fardões, fichários, faixas, panôs, coleções de miniaturas, tabuleiros com peças de xadrez e um majestoso manto bordado, dentre vários outros artefatos, compunham o que o próprio artista designou de "registros sobre minha passagem sobre a terra", um catálogo de todas as coisas do mundo, que, segundo ele, seria apresentado a Deus no dia do Julgamento Final.

De meados dos anos 50 até sua morte em 1989, Bispo se dedicou, com grande afinco e extraordinário senso de rigor, à sua missão, convicto de que tinha sido o escolhido de Deus para reconstruir o mundo após o fim de tudo, repovoando a terra com seus "objetos mumificados" e suas listas infinitas de nomes e imagens bordadas sobre panos ordinários. Buscava sua matéria prima no cotidiano mais imediato, nos redutos marginalizados da pobreza, no agora de sua própria experiência: sapatos, canecas, pentes, garrafas, latas, ferramentas, talheres, embalagens de produtos descartáveis, papelão, cobertores puídos, madeira arrancada das caixas de feira e dos cabos de vassouras, linha desfiada dos uniformes dos internos, botões, estatuetas de santos, brinquedos, enfim, tudo o que a sociedade jogou fora, tudo o que perdeu, esqueceu ou desprezou. Compôs, a partir desse entulho, uma narrativa visual de sua passagem pelo mundo, uma narrativa ordenada segundo as leis mais rigorosas da taxonomia e, ao mesmo tempo, atravessada pelo movimento espontâneo da imaginação. Nela, como explica Eliana Lourenço em ensaio sobre o artista, Bispo deixou inscrito o seu "desejo de buscar uma compreensão da ordem cósmica e de reordenar a vida".

Difícil não comparar esse trabalho de catalogação com o que, segundo a mitologia bíblica, Noé realizou mediante a ameaça do Dilúvio. Considerado por estudiosos da taxonomia como o primeiro colecionador da história da humanidade, o primeiro – segundo John Elsner e Roger Cardinal – a sofrer a "patologia da completude a todo custo", Noé converteu o ato de inventariar todas as criaturas da terra em um antídoto contra a destrutividade do tempo e da morte. Sua paixão foi colocada a serviço da salvação do mundo, como a de Bispo do Rosário. Com a diferença de que, para Bispo, o mundo não se afigurava de forma naturalizada, mas artificialmente moldado a partir do que nele foi depositado pela cultura. Interessava-lhe, particularmente, coletar a multiplicidade das coisas fabricadas e das nomenclaturas que as acompanham. Ou como ele mesmo dizia, "o material existente na terra dos homens". Para depois, ordenar tudo, fazer tudo coexistir em um todo finito, a partir de uma lógica desconcertante, na qual se conjugam, paradoxalmente, a lucidez e o delírio.

Lembrando, de certa forma, algumas classificações borgeanas, como a que caracteriza, por exemplo, a famosa enciclopédia chinesa descrita no ensaio sobre John Wilkins, as coleções de Bispo apresentam, na forma como são organizadas, uma ordenação que aponta, simultaneamente, para os modelos taxonômicos sistematizados pelos códigos reconhecidos de classificação e para uma maneira particular de captar, como diria Foucault, "por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, os parentescos subterrâneos entre as coisas, suas similitudes dispersas". Ou, num plano inversamente simétrico: captar, por sob as semelhanças explícitas, as diferenças invisíveis entre os objetos repetidos de uma série. O resultado de todo esse processo, que tem como função alegórica representar a complexa sintaxe do mundo, não poderia ser senão a fragmentação dessa mesma sintaxe, a revelação da vertigem caótica da realidade circundante.

Jean Baudrillard, em ensaio sobre o ato de colecionar, diz que todo objeto, ao ser colecionado, deixa de ser definido pela sua função para entrar na ordem da subjetividade do colecionador. Abstraído de seu contexto, perde sua presentidade, desloca sua temporalidade para a espacialidade de um repertório fixo, no qual a história é substituída pela classificação. Nesse sentido, colecionar se converte em uma forma de enclausurar o objeto, des-historicizá-lo, de maneira que seu contexto seja abolido em favor da lógica sincrônica da coleção.

No caso de Bispo de Rosário, entretanto, isso se dá de forma mais complexa. Seus objetos, mesmo que desvestidos do caráter funcional e descartável, ao serem subjetivizados pela posse e pela criatividade do artista, passam a dizer muito mais de seu contexto do que quando ocupavam simplesmente o espaço utilitário de suas funções imediatas. Eles adquirem uma linguagem, convertem-se em metonímias do próprio contexto de que foram tirados. As coleções de Bispo arrancam o objeto de sua própria inércia, dão-lhe um nome, um lugar e uma história. Ao mesmo tempo em que se configuram como registros de um tempo, de uma vida e de um contexto marcados pela pobreza, pela loucura e pela exclusão, elas se transfiguram em metáforas sempre renovadas do mundo, confirmando as palavras de um outro artista, Hélio Oiticica, segundo o qual "o objeto é a descoberta do mundo a cada instante".

Isso se constata sobretudo quando tomamos os objetos avulsos de Bispo, verdadeiros ready-made, que guardam visíveis semelhanças com certos artefatos de Marcel Duchamp, como a roda de bicicleta, por exemplo, sem que haja por parte do artista brasileiro qualquer dívida para com o artista francês.
E por um motivo muito simples: Bispo nem mesmo sabia da existência de Duchamp. Sua história não lhe permitiu entrar no mundo intelectualizado dos movimentos estéticos, dos salões de arte, dos espaços privilegiados do saber letrado. Mal sabia escrever, apesar dos impressionantes textos que bordou, das inúmeras listas de nomes que escreveu e dos mapas detalhados que traçou em seus estandartes de pano.

Completamente alheio aos movimentos estéticos que, nos anos 50 e 60 fervilhavam nos meios culturais brasileiros e internacionais, dialogava, sem saber, tanto com os experimentos internacionais da chamada Pop Art, quanto com algumas expressões da neovanguarda brasileira que, na época, ganhava espaço sobretudo no cenário cultural carioca. Mesmo na claustrofobia de seu confinamento psiquiátrico, Bispo manteve uma inexplicável sintonia com o seu próprio tempo, chegando a antecipar também alguns aspectos da arte contemporânea. Como afirma o crítico de arte Frederico Morais, um dos maiores divulgadores da obra do artista:

"Sem que algum dia tivesse saído de sua cela para visitar exposições ou folhear revistas de arte em alguma biblioteca sofisticada, Bispo fez nos anos 60 assemblages como as de Arman, Cesar, Martial Raysse e Daniel Spoerri, integrantes do Novo Realismo. (...) A lógica formal com que Bispo envolve seus trabalhos antecipa certos aspectos da nova escultura inglesa, de um Tony Cragg, por exemplo. (...) Os textos costurados de Bispo lembram os manuscritos de Joaquim Torres-García, nos quais ele funde palavra e imagem. (...) O manto e as demais roupas de Bispo remetem aos parangolés de Hélio Oiticica, tanto quanto sua cama-nave assemelha-se à casa-ninho de Oiticica em sua residência nova-iorquina ou ao Éden que ele expôs em Sussex, Inglaterra."

Como não retornar aqui, aproveitando a lista de Morais, às similitudes dissonantes entre a obsessão de Bispo por catálogos, enumerações, mapas e nomenclaturas e a de Greenaway, que através de seus filmes, trabalhos de artes plásticas, óperas e escritos ficcionais, também tem se dedicado à tarefa de converter o mundo em uma grande enciclopédia, valendo-se dos sistemas racionais de classificação e mostrando, ao mesmo tempo, os pontos em que tais sistemas transbordam e se rompem?


Vale lembrar que o que mais chamou a atenção de Greenaway em relação à obra de Bispo, durante sua já referida visita ao Museu Nise da Silveira, no Rio de Janeiro, foi precisamente o uso criativo que o artista brasileiro fez das taxonomias, a forma como ele parece "zombar um pouco com a mania dos intelectuais de catalogar tudo, de transformar o mundo em verbetes de enciclopédia".

Com tal observação, Greenaway – um eterno seduzido pelos "excitements of research, collection and collation" – não apenas marca a sua cumplicidade oblíqua com a obra do artista brasileiro, como também define o seu próprio gesto catalogador. Um gesto que não se define necessariamente pelo objetivo ilusório de completude, mas pela necessidade crítica de mostrar como os princípios legitimados de organização, sejam alfabéticos, numéricos, estatísticos, cartográficos, tendem a se tornar fins em si mesmos.

Desde os seus primeiros pseudo-documentários, como "Windows", em que faz, pela via do nonsense, um estudo estatístico de casos de defenestração, "H is for House", em que leva ao infinito as possibilidades e impossibilidades da nomenclatura, ou "Act of God", em que levanta uma lista insólita de casos de pessoas atingidas por raios, Greenaway vem jogando ironicamente com as taxonomias, conjugando as regras de classificação com as leis paródicas da ficção. Para não falar aqui de seus longa-metragens, todos eles estruturados em forma de catálogos narrativos, de cuja simetria rigorosa emerge, paradoxalmente, uma lógica desordenadora e muitas vezes absurda.
Poderíamos citar ainda seus trabalhos de artes plásticas e, especialmente, os de curadoria, como o que teve como título "Some Organising Principles", uma exposição em Wales (1993), na qual, através de obras selecionadas, criou uma espécie de história sincrônica da taxonomia, do século XVII à época contemporânea. Em todos esses trabalhos, Greenaway não busca senão constatar o caráter ilusório de toda tentativa de ordenação do mundo, de todo impulso de se colocar, como quis Mallarmé, o mundo inteiro em um Livro.

É nesse sentido que Greenaway (e, por extensão, Bispo) também poderia ser associado a Borges, dado o conhecido apreço de Borges pelas séries temáticas, combinações insólitas, listas e categorizações. Bastaria mencionarmos o modelo taxonômico que o escritor argentino usou na delirante descrição do mundo enciclopédico de Tlön, o planeta "donde abundan los sistemas increíbles", na enumeração dos catálogos infinitos da "Biblioteca de Babel", na explicação do idioma analítico de John Wilkins, e ainda nos verbetes insólitos do bestiário Manual de zoología fantástica. Em todos esses textos, "há uma reversão do típico uso épico de catálogos e listas", como apontou Flora Sussekind, visto que Borges não almeja necessariamente classificar racionalmente a realidade ou o universo, mas revelar o caráter arbitrário de todos os sistemas de classificação. Seus catálogos e listas seriam, portanto, "auto-anulatórios", por se basearem no famoso princípio do próprio autor, segundo o qual "não há universo no sentido orgânico, unificador, que tem essa ambiciosa palavra". E se em Greenaway este gesto crítico se repete é porque suas conjeturas sobre o que Borges chamou de "secreto dicionário de Deus" também não almejam tornar o caos do mundo mais legível, mas evidenciar o impossível de sua organicidade e unidade.

Não seria descabido dizer, portanto, que o cineasta britânico busca chegar, pelas vias transversas da ironia, ao que Bispo do Rosário alcançou, de forma espontânea, com a força da imaginação: revelar, através das ordenações taxonômicas, a desordem e a multiplicidade do mundo. E é nesse sentido que ele transforma em projeto o que para Bispo foi uma missão.

Isso pode ser visto, de forma explícita, na já mencionada ópera-instalação, "100 Objetos para representar o Mundo", escrita e co-dirigida por Greenaway, com música de Jean-Baptiste Barriére. Definido como uma "opera-prop" (prop, em inglês é um termo do teatro que significa acessórios do contra-regra, adereços), o trabalho é uma paródia da história das duas naves Voyager que, contendo mais de uma centena de imagens e arquivos sonoros, foram enviadas ao espaço pelos norte-americanos, em 1977, com o propósito de mostrar a eventuais extra-terrestres a existência da Terra. Como argumenta o próprio Greenaway, é provável que tal material representativo, compactado em um espaço restrito, tenha se limitado às referências culturais da década de 70 e à visão subjetiva de um grupo de "americanos brancos, de classe-média, com formação científica, e talvez com arrogantes ideais democráticos e atitudes paternalistas em relação ao resto do mundo".

Com o visível propósito de ironizar tal empreendimento, Greenaway cria a sua própria lista, inventariando um número limitado de objetos (concretos e abstratos) que, em sua opinião, poderia simbolizar e descrever (ironicamente, é claro) a multiplicidade inumerável das realizações do homem e da natureza na terra. Tais objetos, que vão desde o mais prosaico guarda-chuva ou uma coleção de sapatos até figuras representativas do imaginário cultural do Ocidente, como Adão e Eva, "A Vênus de Willendorf", "O chapéu, o casaco e a pasta de Freud", são recolhidos de temporalidades e culturas diversas (dependendo do país onde a ópera é apresentada, a lista passa a incorporar símbolos locais) e dispostos no espaço serial de um catálogo multimídia, cuja finalidade principal não difere da de outros projetos taxonômicos do artista: desqualificar todo e qualquer esforço humano de representação racional do mundo. Uma lista que atesta não apenas a nossa diversidade, mas também a nossa vulnerabilidade, nossa irrelevância e nossa megalomania, tornando-se, portanto, crítica de si mesma e de sua própria pretensão.

Para a apresentação de tal lista, Greenaway converte o palco em uma espécie de sala de exposição, onde alguns objetos são dispostos segundo a lógica curatorial do diretor. Elementos cinemáticos e teatrais contribuem para o impacto visual do espetáculo, pois à medida que os cem objetos vão sendo apresentados em uma seqüência narrativa, uma profusão tecnológica de vozes, luzes, textos e imagens projetadas sobre o palco satura o espaço de signos, apontando para a impossibilidade de se esgotar a pluralidade de referências que circunda culturalmente cada "objeto" apresentado. Um projeto enciclopédico, sem dúvida, que guarda similitudes com certos projetos literários de autores contemporâneos que também fizeram de suas obras verdadeiras enciclopédias ficcionais. Enciclopédia, aqui, entendida não como um conjunto fechado e definitivo, mas como uma totalidade incompleta, conjetural, multíplice. Como é também a obra de Bispo, feita de um saber não legitimado socialmente, fora da ordem canônica da cultura erudita e, portanto, em estado de deslocamento, de novidade e de alteridade radical em relação aos modelos enciclopédicos conhecidos.

Umberto Eco, ao comparar o dicionário à enciclopédia, chama a atenção para o princípio de "semiose ilimitada" que define o modelo enciclopédico. Segundo ele, a enciclopédia, ao contrário do que almejaram os filósofos iluministas, não reflete de modo unívoco e racional um universo ordenado, mas fornece regras, em geral "míopes", para que, "segundo algum critério provisório de ordem", se busque dar sentido a um mundo desordenado ou cujos critérios de ordem nos escapam. Nesse sentido, tal modelo destoaria do de dicionário, por excluir definitivamente, segundo Eco, "a possibilidade de hierarquizar de modo único e incontroverso as marcas semânticas, as propriedades, os semas". Em suas palavras:

"O conhecimento enciclopédico seria de natureza desordenada, de formato incontrolável, e praticamente deveria fazer parte do conteúdo enciclopédico de cão tudo o que sabemos e poderemos saber sobre os cães, até a particularidade por que minha irmã possui uma cadela chamada Best – em suma, um saber incontrolável até para Funes, o Memorioso."

Como vimos, os objetos apresentados por Bispo em suas coleções são visivelmente enciclopédicos, pois abrangem toda a esfera das matérias a que o homem empresta uma forma. Eles compõem, em conexão com os inúmeros textos, desenhos, mapas, em geral bordados em roupas e estandartes, um mundo desordenado pelas suas próprias regras de organização, através do qual o artista busca dar um sentido à sua própria realidade. É interessante observar ainda o fato de que vários de seus objetos também aparecem na ópera de Greenaway, como os sapatos em série, uma coleção de moedas, a cadeira-de-rodas, o guarda-chuva, a cama, o barco, a boneca, o lixo, objetos de uso doméstico, além dos mapas, textos e das listas intermináveis de palavras começadas com uma determinada letra do alfabeto. O que confirma, mais uma vez, as imprevistas afinidades entre os dois.

Na interseção entre esses dois artistas que nunca se encontraram, cada um cria uma forma distinta (porque subjetiva e cultural) no ato comum de inventariar o mundo. Se, por um lado, a subjetividade de Greenaway é a da consciência irônica, lapidada pelo exercício diário de uma lucidez que, de tão lúcida, revela sua própria vertigem, por outro, a de Bispo advém de uma cumplicidade visceral com a experiência, com o agora de seu próprio corpo, de sua loucura e de sua realidade.
Enquanto um busca sua matéria-prima no espaço canônico da cultura ocidental, o outro recolhe a sua da precariedade material de sua existência cotidiana. Um faz do rigor um delírio; o outro extrai do delírio o rigor. Ambos mostram, por caminhos inversos, que a desordem não deixa de habitar qualquer de nossas tentativas de apreensão totalizadora do mundo, visto que o paradigma da construção e reconstrução dos mundos míticos, místicos, estéticos e até mesmo científicos, é sempre, como aponta Félix Guattari, o da "narratividade delirante". E isso é o que também Borges parece nos dizer em seus textos, como neste que fecha o seu livro El hacedor, e que reproduzo aqui, a título de conclusão :

"Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto."

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Maria Esther Maciel (Minas Gerais, 1963). Poeta e ensaísta, publicou livros como As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz (1995), Borges em 10 textos (org., 1998) e Triz (poemas, 1998). Ensaio originalmente publicado em Poéticas da diversidade (org. Marli Scarpelli e Eduardo Assis Duarte, 2002). Contato: esthermc@letras.ufmg. Página ilustrada com obras do artista João Câmara (Brasil).

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