28 novembro, 2007

retalhinhos brasileiros - Renan Calheiros, O homem cordial, Roriz e tals




[...] No capítulo quinto temos o famoso “Homem Cordial”. O capítulo tem esse título, mas começa pela visão do Estado do brasileiro.

Sérgio Buarque já havia afirmado que “a sociedade civil e a política são consideradas uma espécie de prolongamento ou ampliação da comunidade doméstica”. (p.53)

Agora ele volta ao tema, em um tom hegeliano, para fazer sua própria teoria política: “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar… Só pela transgressão da ordem familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão… Há nesse sentido um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material… A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência” (p.101)

Será imensa a dificuldade no Brasil fazer a transição de uma ordem familiar, baseada no afeto e no sangue, para a do Estado fundada em princípios abstratos. Identificando-se, aqui, com o capital industrial que então se consolidava em São Paulo, Sérgio Buarque.

Há uma “crise que acompanhou a transição do “trabalho industrial…” Falando já do seu tempo, ele dirá que essa crise caracterizar-se-á muito sensivelmente pelo “decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como são sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal, e na concorrência entre cidadão” (p.104)

É nesse contexto que Sérgio Buarque faz a referência a Max Weber, e, segundo Antônio Cândido , “pela primeira vez no Brasil os conceitos de “patrimonialismo” e “burocracia” são usados” (p. XLVI). A crise de transição será marcada por estas categorias.

Sérgio Buarque observa que “não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidades, formados por tal ambiente (família patriarcal), compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público.

Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário ‘patrimonial’ do puro burocrata conforme a definição de Max Weber”. (p.105) E acrescenta Sérgio Buarque: “No Brasil somente excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenações impessoal”. (p.106)

Dessa transição difícil resulta do homem cordial brasileiro. Citando uma expressão de Ribeiro Couto, afirma Sérgio Buarque: “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um caráter definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”. (p.106)


Essa cordialidade não significa bondade, mas é o contrário da polidez. “Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro”. Nele predomina “o desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo…” Ao invés do “triunfo do espírito sobre a vida… o horror às distâncias parece constituir, pelo menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro” (107-110).

Em seu debate com Cassiano Ricardo, depois da primeira edição do livro, em nota de rodapé à segunda edição, Sérgio Buarque vai adiante: “essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado”.


E adverte, “pela expressão “cordialidade” se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas…” Não, há, de fato, qualquer sentido apologético em Raízes do Brasil, mas não há dúvida que, como acontece com freqüência com os grandes pensadores, Sérgio Buarque também se transforma em um ideólogo de sua nação. No seu caso isto ocorre através de duas idéias contraditórias – a crítica dura à dificuldade da transição da família patriarcal para o capitalismo e o elogio inequívoco do homem cordial e de sujas origens patriarcais.


Se a identidade brasileira é mestiça para Gilberto Freyre, ela será cordial para Sérgio Buarque. Mas será também uma identidade em transição, que passa pela “revolução brasileira”, que ele procurará definir um pouco adiante, pela transição do regime patriarcal para o capitalista.

O sexto capítulo, “Novos Tempos” já começa a nos falar dessa revolução, mas é ainda a crítica do passado que agora se mistura com a crítica do presente dos anos 30. A crítica é agora dirigida ao bacharelismo brasileiro herdado de Portugal.


Sérgio Buarque esquece a utilização que fizera um pouco antes de Max Weber e vai afirmar que “a origem da sedução exercida pelas carreiras liberais vincula-se estreitamente ao nosso apego quase exclusivo aos valores (tradicionais) de personalidade… à ânsia pelos meios de vida definitivos, que dão segurança e estabilidade, exigindo ao mesmo tempo um mínimo de esforço pessoal”. (p.116)


Ora, esta característica das elites do Império e da Primeira República não são exatamente patriarcais mas patrimonialistas. O interesse pelas “carreiras liberais” nada tem a haver com o interesses pelas “profissões liberais”, como Sérgio Buarque enfatiza, ao afirmar que “o liberalismo jamais se naturalizou entre nós” (p.119). É apenas a forma de acesso ao serviço público, onde é possível alcançar “meios de vida definitivos”.


O “amor pronunciado pelas formas fixas e pelas leis genéricas”, a confiança “no poder milagroso das idéias”, a formação de uma intelligentzia no Brasil formada por conselheiros de governantes que “tiveram um papel parecido com o daqueles famosos científicos de gostava de cercar-se o ditador Porfírio Dias…” – são todas características do patrimonialismo brasileiro pré-industrial. Daquele patrimonialismo que vicejará na capital do Império e da República à sombra do Estado.


São também manifestações do elitismo brasileiro, de origens patriarcais e patrimoniais, que Sérgio Buarque assinala muito bem: “os movimentos aparentemente reformistas, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de inspiração intelectual (burocrática), se assim se pode dizer, tanto quanto sentimental (patriarcal)”. (p.119 – parênteses meus).


Sérgio Buarque, entretanto, tem dificuldade, como todos os autores antes de Faoro o tiveram – e ainda hoje muitos a têm – de reconhecer a importância da burocracia patrimonialista na história brasileira, a partir da Independência, quando as famílias patriarcais decadentes encontrarão no Estado Imperial o abrigo burocrático que as famílias aristocráticas portuguesas também decadentes encontram no Estado português no Século XVI.


Este é também um belo capítulo de crítica à alienação dos nossos intelectuais. Isto vai acontecer desde a Independência. Embora aparentemente ameaçadas pela decadência, as elites rurais, segundo Sérgio Buarque, mantiveram sua supremacia. Mas começa então a “patentear-se a distância entre o elemento ‘consciente’ e a massa brasileira, distância que se evidenciou depois, em todos os instantes supremos da vida nacional.” (p.121) O amor às letras transformou-se em “derivativo cômodo para o horror que tínhamos à nossa realidade cotidiana… Todo o pensamento dessa época (fim de Século XIX) revela a mesma fragilidade, a mesma inconsistência íntima, no fundo, ao conjunto social; qualquer pretexto estético lhe serve de conteúdo”. (p.121 – parênteses meus)

O declínio do mundo rural abriu espaço para novas elites – a aristocracia do “espírito” – caracterizada pelo amor à palavra escrita, à retórica, à gramática, ao Direito Formal.


Estas elites intelectuais estavam “aparelhadas para o mister de preservar o caráter aristocrático de nossa sociedade tradicional”. (p.123)


Estes intelectuais orgânicos formavam um elite essencialmente alienada, que considerava o Brasil integralmente dependente do exterior.


Sérgio Buarque é enfático: “Aqueles que pugnaram por uma vida nova representavam, talvez, ainda mais do que seus antecessores, a idéia de que o país não pode crescer pelas suas próprias forças naturais: deve formar-se de fora para dentro, deve merecer a aprovação dos outros”. (p. 125)



É fascinante ler hoje estas palavras escritas em 1936. Especialmente para quem, como eu, que venho denunciando a alienação brasileira, hoje expressa na estratégia do confidence building, na tentativa de construção de confiança nos mercados internacionais através da total subordinação a eles.



Ao invés de adotarmos as políticas econômica que julgamos necessárias, esforçamo-nos desesperadamente para adivinhar o que Washington e Nova York, o que o governo norte-americano, a alta burocracia econômica internacional, e o mercado financeiro esperam de nós. Ao invés de acreditar que nosso desenvolvimento econômico depende de nós mesmos, imaginarmos que dependa dos outros.


Sérgio Buarque nos diz, também indignado, que isto não é novo.

[...]

O Estado necessita de “pujança, grandeza e solicitude…” (p.131) Nosso liberalismo democrático foi sempre postiço, “os lemas da democracia liberal parecem conceitos puramente ornamentais ou declamatórios…” (p.l38), o liberalismo neutro, despido de emotividade, baseado na idéia de ‘maior felicidade para o maior número’, conflita diretamente com os nossos valores cordiais.

A tese de uma humanidade má por natureza e de um combate de todos contra todos ha de parecer-nos extremamente antipática e incômoda”. (p.139) Mas, apesar disto, não há incompatibilidade nossa com os ideais democráticos.



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daí nossa distância entre fala/enunciado e ação...
dizemos ser contra a corrupção e subornamos o guarda da esquina...
rural é "ignorante" mas férias boas são na fazenda...

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