27 agosto, 2010

Ferreira Gullar: 'A literatura tem que mudar a vida'

Ferreira Gullar: 'A literatura tem que mudar a vida'


A mesa de jantar está coberta de livros, servidos à fome dos que entram. Nas paredes, quase não sobram espaços: pinturas, aquarelas, serigrafias, que sobem até o teto. Em um canto da sala, algumas pinturas em andamento, poucas, discretas, em que o próprio Ferreira Gullar trabalha. “Isso não tem importância. Faço só para me distrair”. Resiste um pouco a posar para uma foto ao lado de um dos esboços. Mas logo cede. Aos 80 anos, apesar da magreza crônica e do ar um tanto frágil, nada mais parece atingi-lo. 
A TV está sintonizada, em volume baixo, em um canal esportivo. Enquanto nos esperava, Gullar assistia a uma partida de tênis. Pergunto-me que papel o tênis, um esporte tão rigoroso, desempenha na rotina de um poeta. Talvez seja um contrapeso, talvez ajude em seu equilíbrio. Penso melhor, nos lances impecáveis, nas jogadas de grande precisão, na necessidade extrema de concentração. Sem dúvida, atributos do poeta Ferreira Gullar. Seria um erro, é claro, um grande erro, reduzir Gullar a eles. Mas eles estão presentes, todo o tempo, em seus versos. 
Dias antes, em Paraty, durante a Flip, dei com sua figura inconfundível estampada nos muitos telões espalhados pela cidade. Gullar viajou pela manhã, participou de uma mesa de leitura, depois fez uma palestra, e logo se recolheu ao hotel. Mais tarde, alguns amigos o pegaram para jantar. Tiveram imensas dificuldades de encontrar um restaurante vazio. A Flip é um evento pop, em que os escritores são cultuados como os roqueiros, ou as divas. Nada mais dissonante, nada mais incompatível com a figura silenciosa e lenta do poeta. 
Agora, em seu apartamento na Rua Duvivier, em Copacabana, ele está de volta a seu mundo. Sozinho, com as janelas fechadas para conter o ruído do trânsito, a luz inclinada do sol que apenas acaricia seu rosto. Não precisa de muitos movimentos, pode falar em voz baixa, pode concentrar-se em si mesmo. Com serenidade, e até uma discreta doçura, submete-se à seção de fotografias. Enfim, nos acomodamos frente a frente, em torno da mesa de jantar. Não para uma refeição, mas para uma conversa. Faz todo o sentido: um poeta se alimenta das palavras. Falo pouco, muito pouco. Uma boa parte das perguntas que se esboçam em minha mente permanece ali mesmo, em pensamento. Se aqui as reproduzo, a rigor mais pensamentos que perguntas, é só na esperança de aproximar o leitor do diálogo silencioso que travamos. Gullar me conhece bem, embora não sejamos amigos íntimos. Sabe o que penso — é um leitor atento e crítico. Sabe, perfeitamente, o que venho perguntar e, antes que eu pergunte, já me responde, em palavras certeiras. É o poeta que se entrevista, ele não precisa de mim. Sirvo apenas de testemunha. 
Não gosto de gravadores, prefiro anotar à mão, em pequenos cadernos. Logo percebo que a ausência da máquina, substituída por meus garranchos, lhe cai bem. Enquanto falamos, algo se escreve. Sou eu quem anoto, mas quem escreve, de fato, é Gullar. Vivemos uma bela experiência, em que a entrevista se aproxima de um encontro. Eu o escuto — mas ele, antes que eu perceba isso, também me escuta. Minha presença de repórter lhe basta para que, sem precisar de mim, se ponha a falar. Estranho, belo lugar em que me coloca: o de confessor. 
Embora mantenha o mesmo tom de voz, nas entrelinhas posso perceber os momentos de emoção forte, uma raiva contida que ora aparece aqui, ora ali, e um pouco da dor de quem, mesmo sempre escrevendo “por prazer” — como ele faz questão de assinalar —, atravessou um longo caminho, uma longa viagem. Ainda o atravessa — seu livro mais recente, “Em alguma parte alguma”, é uma prova de que conserva não só todo o vigor criativo, como está em seu apogeu. Um livro impecável, em que a poesia, enfim concluída a grande travessia do mundo, agora se volta para si própria. 
Os 80 anos, para Gullar, não são a idade da consagração e das honrarias. São um momento em que, atravessadas oito décadas, e mais do que nunca, ele está pronto, talvez como nunca teve, para ser o que é. Poeta, grande poeta, um dos maiores da língua. Enquanto o ouço, mesmo atrapalhado com minhas anotações, tenso para que nada me escape, um sentimento de serenidade se apossa de mim. Não estou só diante de um grande poeta, estou diante de um grande homem. 

Quando você entendeu o que é a poesia? Em que momento o poeta Ferreira Gullar nasceu? 
FERREIRA GULLAR: Escrevi poemas desde muito cedo. Mas só depois de publicar meu primeiro livro de versos, “Um pouco acima do chão”, lançado em 1949, quando eu tinha 20 anos, entendi, de fato, o que é a poesia. Por isso excluí esse primeiro livro de minha “Poesia Completa”. Nele falta o essencial: falta a descoberta da poesia. 

E como foi essa descoberta? Alguma experiência em particular a desencadeou? 
Creio que aconteceu quando um amigo me mandou, do Rio de Janeiro para São Luís, um exemplar das “Elegias de Duíno”, de Rainer Maria Rilke. Eu não conhecia Rilke. Assim que comecei a ler, pensei: “Então a poesia é isso!” Lembro em particular de um verso, que fala mais ou menos assim: “Se o arcanjo que está por trás da estrela desse apenas um passo em minha direção, meu coração explodiria”. É um verso assombroso. Terminei de ler e pensei: “Isso é poesia”. Abri as “Elegias”, comecei a ler e não parei mais. Li direto, até terminar. Em muitos momentos, o livro me deslumbrou. Ali entendi que a poesia era outra coisa — a poesia não era o que eu, antes de ler o Rilke, pensava que ela fosse. 

O que aconteceu depois? 
Passei a procurar novos poetas, a ler novos poetas. Descobri T. S. Eliot. Há aquele poema em que Eliot fala de um tanque vazio em uma praça, um tanque seco. As crianças estão rindo dentro das folhas. E aí uma nuvem passa e o tanque se enche de água. É só um velho tanque de praça, mas ele motiva toda uma série de imagens. Penso em versos como: “Vai, vai, diz o pássaro, que o espírito humano não suporta tanta realidade”. É um verso assim, um verso lindo, de “Os quatro quartetos”. Tudo isso me deslumbrava e me modificava. 

Abria-se uma nova forma de beleza? 
Li Paul Valéry, sobretudo “O cemitério marinho”. Depois cheguei ao Arthur Rimbaud. Era a descoberta de um mundo feérico. Cheguei, então, ao Drummond e aos versos de “Onde há pouco falávamos”. Um antigo piano, que pertenceu a alguma avó morta, “e ele toca e ele chora e ele canta sozinho”. São versos que sempre me voltam. Mas não foi só a descoberta da beleza. Descobri, também, a poesia na coisa sórdida, no pus, na poeira, nos insetos. A poesia do desprezível. A poesia era muito maior do que eu imaginava! Essa foi a grande descoberta. 

De que outros momentos marcantes você se recorda? 
Houve um fato banal que me marcou muito. Um dia, em São Luís, fui a um sebo e comprei três livros. Um livro de filosofia, um segundo que esqueci e os “Contos fantásticos”, de E. T. A. Hoffmann. Quando cheguei em os contos de Hoffmann, eles estavam cheios de fungos. Depois da surpresa, pensei: “Esse cara escreveu um livro no século XIX, em pleno romantismo, e ele jamais imaginaria que seu livro chegaria, um século depois, a um sebo de São Luiz e que teria suas páginas comidas pelos fungos”. Fiquei então olhando aquele livro, todo fungado. E pensei: “Para que serve a literatura? Para terminar no sebo, cheia de fungos assim?” 

Você encontrou uma resposta para essa pergunta? 
Sim. Aos 20 anos eu respondi a essa pergunta assim: “A literatura tem que mudar a vida. Ela não pode ser gratuita, não pode ser à toa”. E, a partir da resposta que lhe dei, mudou não só a minha visão da literatura, mas mudou a minha vida. Creio que “A luta corporal”, que publiquei em 1954, nasce aí. Nasce desse assombro e dessa descoberta. Nesse momento, tudo mudou — e não era uma coisa qualquer, era a minha vida que mudava. “A luta corporal” é isso: um livro em que estou jogando tudo. 

Que efeitos essa experiência provocou em sua escrita? 
Concluí que a poesia não podia ser apenas versos bem feitos. A poesia tem que ser mais. Comecei, então, a pensar que a linguagem era velha. Que eu mesmo, embora só com 20 anos, era um homem velho. Eu era um poeta parnasiano, tive uma formação parnasiana rigorosa. Fazia versos em decassílabos e dodecassílabos! Eu precisava mudar também. 

Que caminho tomou então? 
Acho que, quando descobri a poesia moderna, fui mais radical do que os outros. Passei a escrever sem me submeter a nenhuma norma e sem me permitir nenhum vício. A escrever sem nenhuma habilidade. “Não quero ser mais um poeta parnasiano”, decidi. Escrever bem não me interessava mais. Comecei a pensar: cada poema nasce aqui e agora, sem passado, e a linguagem tem que nascer junto com o poema. Se a linguagem é velha, ela envelhece o poema. Então, resolvi que tinha que chegar a uma linguagem tão nova quanto o poema que ia escrever. 

E como chegou a isso? 
Quando enfim cheguei a isso, em “Roçzeiral”, poema que está no fim de “A luta corporal”, a linguagem se desintegrou e se tornou incompreensível. Era abril de 1953, eu tinha 23 anos. Logo depois de escrever “Roçzeiral”, um dia, no Rio, fui ao bar Vermelhinho para encontrar uns amigos. Sentei e lhes disse: “A poesia para mim acabou”. Era algo tão decisivo, tinha chegado a uma coisa tão radical, que eu não podia voltar atrás. Eu tinha que continuar para a frente, mas já não podia ir para a frente também, porque tudo tinha se desintegrado. “Roçzeiral” é essa desintegração. Já está no primeiro verso: “Au sôflu i luz ta pompa inova”. 

Deve ter sido um momento muito perturbador. Como você o resolveu?
Dias depois, ainda sufocado, contei o que sentia ao Mário Pedrosa, de quem eu era grande amigo. “Não chegue a conclusões rápidas”, ele me disse. “Você chegou a algo muito sério, fez algo muito sério. Enquanto você não resolve isso, tenha calma. E leia filosofia”. Naquele dia mesmo, Mário me emprestou uns livros. Comecei a ler os pré-socráticos, a ler o Parmênides. Tomava muitas notas e concordava com tudo o que lia. Aquelas leituras me ajudaram muito, o Mário estava certo. 

E onde você foi parar? 
A partir de “A luta corporal” eu fiquei sem rumo. Fiquei sem meu instrumento, sem minha linguagem, eu a perdi. Mas eu tinha que recomeçar, só me restava isso. Peguei então umas folhas de papel, cortei, amarrei-as com barbante e fiz um livrinho, para eu escrever à mão. E ali comecei a escrever “Crime na flora”, ou “Ordem e progresso”, livro que eu só publicaria em 1986, 30 anos depois! É meio prosa, meio poema e começa sem sentido. Pouco a pouco, surge a história de um cadáver que está em um jardim, misturado com as flores. Ora é um homem, ora não é. E eu entro em delírio junto com esse livro. Enquanto eu o escrevia, não sabia o que estava fazendo. Só depois entendi que com esse livro eu reinventei a minha fala. 

O que esse livro significa exatamente para você? 
Ele nunca foi incluído em minha “Obra poética”, porque até hoje eu não sei o que ele é. Só o publiquei quando me tornei autor da José Olympio. Ele tem uma linguagem muito inventada, como o “Roçzeiral”. E tem poemas com palavras soltas — é, provavelmente, um precursor da poesia concreta. É resultado da busca de novos caminhos. É totalmente arbitrário, às vezes chega a ser uma maluquice. O final é mais louco ainda. Eu não sabia como acabar o livro, então peguei uma caneta preta e outra vermelha, contei uma história com a preta, outra com a vermelha, e depois datilografei tudo em uma cor só. Não importa o que ele seja: ao terminá-lo, eu tinha reconstituído a minha possibilidade de escrever. 

E o que veio depois? Onde esse livro lhe levou? 
Nesse momento, nasce a poesia concreta, que na verdade nasce de “A luta corporal”, porque ele é um livro que destrói a linguagem da poesia. Já ali eu queria uma nova linguagem, como o pessoal de São Paulo. E dessa busca toda surge a poesia concreta, os poemas concretos, a partir de 1957. Uma poesia sem discurso e que tem uma sintaxe visual. Passei a fazer poesia concreta e fiz poesia concreta até a ruptura com os poetas concretos de São Paulo. Isso aconteceu quando eles se empolgaram e decidiram fazer poesia “matematicamente”. Então, rompemos. Publiquei um texto no “Jornal do Brasil” para separar as coisas: eles faziam “matemática da composição”, enquanto eu fiz da poesia concreta uma experiência fenomenológica. Era a ruptura. Isso foi em julho de 1957. Não dava mais para continuar em sua companhia. Precisava recomeçar mais uma vez. 

Como foi a nova travessia? 
Mário Pedrosa, mais uma vez, surgiu para me ajudar em meio à crise. Ele foi um homem excepcional, que participou do surrealismo, foi amigo de André Breton, conhecia os dadaístas. Foi ele o primeiro a ver a arte dos internos do Engenho de Dentro, experiência que resultou no Museu das Imagens do Inconsciente. Havia também a Lygia Clark, o Hélio Oiticica, o Amilcar de Castro, artistas com quem eu conversava muito. E dessa convivência intensa e dessas conversas intermináveis nasceu o movimento neo-concreto. Mudamos de nome porque não tínhamos mais nada a ver com o movimento concreto, com a arte concreta. Então, escrevi o “Manifesto da Poesia Neo-Concreta” e também a “Teoria do Não-Objeto”. Talvez seja o único manifesto que não anuncia o futuro, que só fala do que foi feito. Sempre fui contra a ideia de ditar um caminho para a arte. A arte é algo que se descobre a cada momento. 

Como você avalia, hoje, essa longa transição? 
Tudo isso é muito intuitivo. Você fala hoje, arruma tudo melhor agora, mas na hora nem consegue falar. A pergunta que me atormentava era: como posso trabalhar com uma estrutura pessoal e, ao mesmo tempo, levar o leitor a ler? Foi nesse momento que inventei o “livro poema”. O próprio livro era o poema. A ideia me levou a novos caminhos. Depois de usar a mão, eu resolvi usar o corpo. Imaginei então um poema que seria uma sala. Uma sala de 3 m x 3 m. O cara abria a porta e entrava no poema. No centro da sala tinha um cubo, ele levantava o cubo, havia outro cubo menor, e depois outro. No fim, surgia a palavra “Rejuvenesça”. Entusiasmado, o Hélio Oiticica me convenceu então a construir esse poema em sua casa, a mesma que foi destruída por um incêndio no fim do ano passado. Tentamos fazer isso. Mas havia chovido muito e, quando abrimos a porta do poema, isto é, da sala, deparamos com dois palmos de água! Aquela água toda e o cubo flutuando sobre ela. Era tanta água que a sala depois virou mesmo uma caixa d’água! 

Vistas à distância, parecem experiências bastante impulsivas. 
Mas eu sempre refleti muito sobre o que faço. Onde vou parar com isso? — sempre me pergunto. E eu repetia sempre essa pergunta: para onde estava indo? Havia problemas práticos. Eu morava em um apartamento pequeno, onde iria guardar obras tão grandes? Comecei, então, a escrever artigos para o “Jornal do Brasil” questionando, mais uma vez, minha visão de arte e de poesia. E então parei, não fiz mais. Logo depois, veio a inauguração de Brasília. Fui convidado para passar uma temporada de trabalho no Planalto. Aceitei e lá, isolado, comecei a me relacionar mais com o país e com seus problemas sociais. Um amigo me emprestou então um livro escrito por um padre. Chamava-se “O pensamento de Karl Marx”. O autor era Jean Yves Calvet, um padre conservador. Na primeira parte, a que eu li, ele resumia a teoria marxista. Na segunda, que eu não li, ele a refutava. Eu me converti ao marxismo lendo o livro de um padre antimarxista! A partir dali, passei a pensar intensamente no Brasil e isso se infiltrou em minha poesia. 

Que nova poesia surgiu disso? 
No momento da renúncia de Jânio Quadros voltei para o Rio de Janeiro, para trabalhar no CPC da UNE. E aí minha vida deu outra guinada, que me afastou ainda mais da vanguarda. Comecei a fazer cordel, que é a coisa mais popular que existe, a forma de poesia mais primitiva. E passei a fazer também um tipo de poesia panfletária, porque pensava na política, e não na poesia. Fiquei nisso, fazendo isso, até que veio o golpe militar de 1964. O golpe me fez ver que aquele tipo de poesia não servia para nada, porque não conseguia fazer a revolução. A gente acreditava que ia avançar, mas na verdade provocou um grande atraso. 

E como você conciliou política e poesia? 
Concluí que tinha que fazer poesia política sim, mas poesia política de qualidade. É nesse momento que me entrego de vez à escrita de “Dentro da noite veloz”, livro que escrevi entre 1962 e 1975, a maior parte dele já no exílio. Nesse livro, há uma evolução, há uma poesia política que vai se requintando. Escrevo poemas sobre Guevara, sobre o Vietnã, trato de temas políticos, mas trabalho o poema. O livro é publicado em 1975 e é nesse ano também que escrevo o “Poema sujo”, que sairia no ano seguinte. Que não é mais um poema político propriamente dito, mas que é fruto do que vivi, é fruto da situação em que eu me encontrava em Buenos Aires, depois de ter passado uma temporada na URSS e outra no Chile. 

Como foi sua temporada em Buenos Aires? 
Primeiro, para atender o desejo de minha filha, me transferi para Lima. Machu Picchu estava na moda e minha filha queria ir para lá. Depois de tantas mudanças à força, eu não me sentia no direito de lhe dizer não. Mas a vida no Peru era muito difícil, eu trabalhava na universidade, ganhava pouco. Não resisti e aceitei um convite para ser professor residente em Buenos Aires. Acontece que no dia em que desembarquei na Argentina, o Perón morreu. Assume a Isabelita, e isso resulta em uma reorganização do governo. Resultado: não consegui mais o emprego prometido. Logo começa a guerrilha, começa a conspiração. Surgem sinais de que o golpe no país seria muito violento. Mas eu não podia sair da Argentina, porque meu passaporte fora apreendido. Eu não podia ir para parte alguma. Aí pensei: “Vou escrever a última coisa de minha vida”. O “Poema sujo” nasce dessa situação, é o resultado dessa situação. 

Depois de tantas guinadas, tantas rupturas, o que era a poesia para você nesse momento? 
Estava certo de que escrevia meu último poema. Pensei então em escrever um poema que falasse de tudo o que nunca falei. Lembro que, durante uma noite de insônia, quando não conseguia parar de pensar no poema ia escrever, me surgiu uma ideia: “Vou vomitar tudo o que vier na minha memória, sem ordem nenhuma. Isso vai virar um grande magma e então vou extrair desse magma o poema que quero escrever”. No dia seguinte, porém, sentei diante da máquina de escrever e não me saía uma só linha! Eu pensava: “Decidi vomitar, mas como vou vomitar?” Não conseguia. O poema começa: “Turvo, turvo, a turva mão do sopro...”, começa com algo que não tem sentido. Como se eu estivesse em um momento anterior à fala, como se eu renascesse naquela escrita. Isso, esse começo sem sentido é o vômito, é o começo do poema, e o poema de fato surge assim. 

Como foi o processo de escrita? 
Já no primeiro dia de trabalho escrevi cinco páginas. Com essas primeiras páginas escritas, parei para responder a uma carta do Leandro Konder. E aí, sem pensar, eu lhe disse: “Vou escrever um poema que se chamará ‘Poema sujo’ e que terá de 70 a 100 páginas”. Meus poemas nunca nascem com um nome, mas esse nasceu. Eu previ o que ia acontecer! De maio a outubro daquele ano, escrevi o poema, não parava de escrever. Ia ao supermercado, à banca de jornais, ao correio, mas o tempo todo eu estava “escrevendo” o poema em minha cabeça. Até que esse impulso que me fazia escrever cessou. O poema não estava concluído e, no entanto, eu não estava mais no mesmo estado de espírito que fez o poema nascer. Acabou a magia e o poema não estava pronto. 

O que se faz numa hora dessas? 
Depois de lutar muito, encontrei a solução no fim do poema, que tem uma estrutura diferente de todo o resto. Foi assim: um dia eu me lembrei de uma frase de Hegel, que li em um livro sobre Lênin. Diz a frase: “Num ramo de árvore está o particular e o universal”. Pensei então: o particular é o ramo e o universal é a árvore. Essa ideia me levou ao final de meu poema: “O homem está na cidade como uma coisa está em outra. E a cidade está no homem que está em outra cidade”. Ou seja: a árvore está no ramo. Essa relação entre o ramo e a árvore repete a relação entre a cidade em que nasci, a cidade que estava dentro de mim como memória e a cidade em que eu realmente vivia, Buenos Aires. A partir da frase de Hegel, que me veio por acaso, o poema se resolveu. 

É muito bela a história da chegada do “Poema sujo” ao Brasil. 
Vinicius de Moraes chegou a Buenos Aires e queria ouvir o poema. Marcamos um encontro na casa do Augusto Boal. Depois de ouvir o poema, Vinicius decidiu trazê-lo para o Brasil. “Não tenho cópia”, eu lhe disse. “Não quero cópia, quero ouvir o poema na sua voz”. E isso aconteceu. Vinicius gravou uma leitura que fiz do poema, depois a trouxe para o Brasil e a mostrou a amigos. Foram feitas várias cópias da fita e o poema passou a circular pelo país. Até que o Ênio Silveira ouviu o poema e resolveu publicá-lo. E meu poema chegou a aparecer até em uma lista de mais vendidos. 

É verdade que o sucesso do poema impulsionou sua volta ao Brasil? 
Sim, o sucesso do poema me emocionou tanto que eu decidi voltar, mesmo sabendo que provavelmente seria preso. Amigos como o Zuenir Ventura e o Elio Gaspari sugeriram então que eu negociasse minha volta com o general Golbery. Não me entusiasmei muito com a ideia, mas decidi tentar. Soube depois que o Golbery leu o poema e o achou obsceno. Mesmo assim, ele resolveu falar com o chefe do SNI, que era o general Figueiredo. A reação do Figueiredo foi dura: “Não quero esse comunista aqui”. Mesmo depois disso, decidi retornar. Escrevi uma carta ao jornalista Villas-Boas Correa, pedindo que ele informasse ao Ministro da Justiça, ao comandante do Exército e ao presidente da Associação Brasileira de Imprensa que eu voltaria. Fiz isso para me proteger — e, mesmo assim, fui preso ao chegar. Os militares me interrogaram durante 72 horas seguidas, noite e dia, sem parar. Exausto, tonto, sem dormir, sem descansar. Quando eles saíam, deixavam um som ligado a todo volume, um som ensurdecedor. E o ar condicionado em uma intensidade tão alta que eu tremia de frio. Começaram a sair notas sobre minha prisão na Argentina, na França, nos Estados Unidos. E eles acabaram me soltando, porque não tinha sentido algum me manter preso. 

O que você fez depois que recuperou a liberdade? 
Voltei a trabalhar na imprensa, voltei a trabalhar no “Estadão” (“O Estado de S. Paulo”). Logo no início dos anos 80, lancei “Toda poesia”. Depois escrevi “Na vertigem do dia”, livro que saiu em 1980. Se o “Poema sujo” é sinfônico, “Na vertigem” é música de câmera, é um livro em voz baixa. Não é mais poesia política. Nele, volto a lidar com aquela massa de lembranças e de matéria poética que surgiu com o “Poema sujo”. A partir de minha volta, passo a ter um novo relacionamento com a poesia, é um momento de nova ruptura. Já não existe mais a política no meio. Sou devolvido à minha condição existencial. 

De que nasce sua poesia hoje? 
Minha poesia, hoje, nasce do espanto. Poesia não é uma coisa que se decide fazer. A poesia parte de algo que te surpreende, que te espanta e que o leva a escrever o poema. E no meu caso isso é aleatório, não planejo livro algum, nunca planejei. A poesia para mim é uma aventura em que o acaso e o inesperado determinam o processo. Claro, surgem problemas no curso da aventura, e sou levado a enfrentar esses problemas, a trabalhá-los. Através dos versos, faço uma descoberta da realidade e do mundo, isso alimenta hoje a minha poesia. O que percebo é que, depois de “Na vertigem do dia”, a poesia se torna uma coisa que se constrói aleatoriamente. Eu não tenho projeto algum. Como se o projeto poético se passasse em outro nível de atividade intelectual — e eu até me pergunto se aquilo é literatura mesmo, se não é. Entro em outro estado, em uma indagação fundamental, entro em um jogo que não tem finalidade e não sei onde vou chegar. 

Fale de “Em alguma parte alguma”, seu novo livro. 
Penso no primeiro poema do livro, “Fica o não dito por dito”. Aconteceu assim. Eu saía da casa de Claudia >ita<(Ahimsa, companheira do poeta), na rua senador Eusébio, no Flamengo. Logo em frente há um jardim, e eu senti o cheiro do jasmim. Eu me embriaguei com aquele cheiro. Arranquei um punhado de flores e cheirei com intensidade, aspirei de maneira muito forte. Era um cheiro selvagem, que me queimava as narinas. Saí de lá meio embriagado. No dia seguinte, acordei e resolvi: “Vou escrever o poema do jasmim”. O que é aquele cheiro? O cheiro do jasmim é uma desordem. Quem dá ordem é a palavra. Tudo, o poema inteiro, saiu da experiência daquela noite. 

Como fica o conflito entre a ordem e a desordem? 
A linguagem é uma ordem, é um sistema. Fora da linguagem, só há desordem. Como expressar, então, o que está fora do sistema? Como captar essa desordem? A linguagem só diz o que a linguagem diz. O que está fora dela não entra na linguagem. Então, fica o não dito pelo dito. Fica um pensamento daquele mundo, que não tem nada a ver com a realidade. Um pensamento que se passa à margem da realidade. Mas ele, na verdade, é a pergunta e a resposta fundamental. Ele é a minha vida, é ali que sou Ferreira Gullar. É ali que indago o fundamental. 

O que é ser um poeta? 
Fui dramaturgo, crítico de arte, jornalista, locutor de rádio. Mas o que eu sou é poeta. É ali que acontece a coisa fundamental. Ali, na poesia, é diferente de tudo o mais. Com o poema, eu levo às pessoas algo que só eu posso lhes dar. E cada poeta faz isso. O poeta só traz alguma coisa quando a descobre, ou a inventa. Acho que tudo é invenção. Não acredito que a literatura revela a realidade, acho que ela inventa a realidade. O cheiro do jasmim é o cheiro do jasmim, mas é intraduzível. O poema faz algo que representa aquilo, mas que não é aquilo. E as pessoas querem isso: um mistério que tem algo a ver com a vida real, mas não é a vida real. Que está vinculado à vida real, embora não seja a vida real. O cheiro da tangerina, por exemplo, já o senti tantas vezes. O poeta inventa algo a respeito desse cheiro e o leitor incorpora essa invenção à sua vida. Isso é a poesia. 

Alguns poetas dizem que escrever é doloroso. Você sofre para escrever? 
Comigo não se passou nada dessa natureza. Em mim, todas essas mudanças que relatei foram muito saudáveis. Eu tenho prazer em viver a aventura poética. São descobertas que enriquecem a vida e enriquecem os outros. Eu tremo na expectativa do que vai acontecer, do que pode ser o processo. Tenho prazer o tempo todo, eu tremo, mas não sofro. Não acho que escrever seja doloroso. Ninguém me manda fazer isso, eu faço porque quero. Mas não escrevo quando quero, senão, não é poesia. Quando entro na poesia, sinto um grande prazer. Sinto muito prazer em viver essa experiência extraordinária de revelação. Claro, às vezes atravesso noites me perguntando: qual é o caminho? Qual é a solução? Mas essas dúvidas também são prazerosas. Estou fazendo algo que pode ser bonito, que pode ser comovente. 

Mas não existem momentos em que você sente medo? 
Certa vez, fui a São Paulo e me hospedei em um hotel. Comi alguma coisa e logo depois me deitei para dormir. De repente, no meio da noite, despertei. Colado à cama havia um armário. Acordo, sento-me na cama e me dou comigo — me deparo com um outro Eu! Logo em seguida, descobri que era apenas o espelho do guarda-roupa. Mas, por segundos, no escuro, eu me vi duplicado. Estou me lixando se foi o espelho — eu vivi isso! Vivi uma experiência em que eu era dois. De repente, fui abduzido pelo espelho. Foi uma experiência muito rápida, levou um segundo, logo depois descobri que era apenas uma ilusão. Mas no momento em que eu a vivi, era uma experiência verdadeira. Isso talvez seja a poesia.
JOSÉ CASTELLO é colunista do Prosa & Verso, escritor, e lança dia 2, às 19h, na Livraria DaConde, seu romance "Ribamar" (Bertrand Brasil)

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