25 agosto, 2010

Deus (conselheiro político?)

Deus
Data: 29/08/2010
Veículo: FOLHA DE S. PAULO - SP
Editoria: PODER
Jornalista(s): FERNANDA TORRES
Assunto principal:POLITICA 
A eleição virou um fenômeno de massa, midiático, que age em favor próprio

NA ESPERANÇA de ver os candidatos ao vivo, fui ao encontro do Fórum Nacional na Academia Brasileira de Letras no Rio de Janeiro. O fórum é uma associação apartidária de crânios privilegiados que estuda maneiras viáveis de modernizar o Brasil.
Serra fez forfait e Dilma enviou Michel Temer. Marina e Plínio compareceram. A sessão foi presidida por Reis Veloso, ministro do Planejamento de Médici e Geisel e um dos responsáveis pelo milagre brasileiro nos anos 70.
Quando eu era adolescente, qualquer homem público ligado aos militares era visto como a encarnação viva do Lobo Mau. Hoje, é curioso perceber que a agenda econômica da ditadura não se afasta muito da dos candidatos de esquerda que disputam a Presidência.
Veloso fez uma impecável explanação histórica do nosso atraso. Comparou o PIB, a taxa de crescimento, tocou na tragédia inflacionária e desfiou todo o rosário de números que paira acima das convicções partidárias para apresentar o inteligentíssimo documento de propostas do fórum.
Quarenta anos depois da revolução de 64, a ideologia não norteia mais nossas decisões. A economia tomou seu lugar. A economia e os interesses eleitorais.
Graças ao voto obrigatório e ao crescimento da população, a eleição se transformou em um fenômeno de massa, midiático, que age em favor próprio.
A corrida eleitoral fomenta os caixas dois, os bilhões gastos em propaganda, os conluios imperdoáveis e a retórica para boi dormir dirigida a currais de eleitores com nível zero de educação.
A democracia não funciona. O problema é que não encontraram um sistema melhor; as opções são terríveis.
Depois de Veloso, Marina Silva abriu seu discurso agradecendo a Deus.
Uma senhorinha paulistana confessou ao padre engajado que vai votar em Marina porque, para Dilma, Lula é Deus, para Serra, São Paulo é Deus, e para Marina, Deus é Deus mesmo.
Já o filho adolescente de um amigo meu se revoltou ao saber que o pai votaria na ex-ministra. "Mas ela é criacionista!", disse o menino. Ao que o pai respondeu: "Mas os outros são se-criacionistas, meu filho!"
Marina é monoteísta e monotemática.
Ela relembrou as catástrofes causadas pelas mudanças climáticas e repetiu, com razão, que o desenvolvimento sustentável passa por todos os problemas capitais do Brasil: educação, saúde, saneamento...
Concordo. Só tenho dificuldade quando a ex-ministra afirma que escolherá os melhores quadros, criará as ferramentas mais eficazes e julgará o que for mais justo, mas não explica, na prática, como concretizará tais mudanças.
E Deus sabe como é difícil.
No fórum, depois que Reis Veloso citou a frase da "Economist" ("a natureza foi generosa demais com o Brasil"), Marina narrou sua luta no ministério, e mais tarde no Senado, para aprovar as leis de proteção da biodiversidade brasileira. Foi derrotada em todas as instâncias.
Esse fato me fez pensar. Dilma não precisa de mim. É só vê-la sóbria e sólida na campanha de TV. Dilma já está presidente. O programa de Serra é estranhíssimo, mais populista que o dos populistas, e o enquadraram na frente de um cartaz do Cristo Redentor cujos braços abertos parecem sair de dentro de suas orelhas. Será que ninguém notou?
O PSDB entregou para o DEM a candidatura de um político valioso como José Serra. Como pôde?
Eu nunca votei para ganhar. Depois do encontro na ABL, tive vontade de exercer meu voto útil e fortalecer as forças contrárias ao extrativismo atávico tão bem representado no Congresso.
Até outubro, decido. Quem sabe com a ajuda de Deus.

FERNANDA TORRES é atriz

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