01 fevereiro, 2010

Diálogo do século XXI

Feira da escassez
por Galdino

Dezesseis e trinta e dois da tarde de terça-feira. Bairro da alta classe de Hipocrisópolis. O senhor PhD em Desfassontologia da PUN (Pontifícia Universidade Neoniilista) chega ao mercadinho mais badalado da redondeza:

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- Boa tarde, Pouco Importa.

- Ótima, seu PhD. Como vai a família?

- Já foi!

- Claro, claro. E o que quer hoje?

- Vou levar seis kg de misericórdia e três dúzias de piedade.

- Ah, isso não vou ter, não. Aliás, ninguém: está fora de fabricação faz tempo.

- Então, me dê aí uns duzentos gramas de bom senso e quatro pedaços de serenidade fresquinhos.

- Ih, era pra chegar ontem, mas o carregamento tombou lá na rodovia 666 que liga Santa Iracividade à Velha Imponderância.

- Ora bolas, pelo menos tem por aí algum diálogo que preste ou uma e outra boa vontade? Se não tem, então, o que será de mim... hahaha.

- Nem isso. Serve esse papo furado velho? Espera um pouco... Ah, tem essa passeatinha de domingo. Mas já tá meio sem gosto, pra falar a verdade.

- Pelo que vejo, Pouco Importa, a indignação já acabou também.

- Virgem Maria. Isso aí, seu P, quando chega, puft, vai na mesma hora. Pior : ninguém se lembra dela depois.

- Tá precisando melhorar o estoque, meu velho.

- Qual o que, patrão? Quase tudo que o senhor quer não tem saída. Meu estoque está abastecido.

- Será? Deixa ver então... hum, trás uma lata de credibilidade daquelas ali.

- Mas rapaz, era só o que me faltava. O senhor sabe muito bem que isso só com receita do Ministério da Manipulação. E tem que renovar sempre: a validade vence “rapidez”.

- Vou acabar definhando desse jeito, Pouquinho.

- É, né? Sei, sei... Leve alguma coisa instantânea, então: memória curta, falácia mole, vingança ineficaz, superficialidade afogadiça, oportunismo desenfreado...

- Hum, é bem tentador, viu. Mas hoje acordei igual a uma grávida: vontade de comer coisas extravagantes. Procura, nem que seja lá nos fundos, uma igualdade de oportunidade escondidinha. Mesmo que esteja sendo preparada agora. Eu espero.

-Hahahahaha, nessa o senhor caprichou: nem a mãe do Doutor Tudo Pode teve esse tipo de desejo. Daqui a pouco vai me pedir um saco de justiça para todos, ou, pior ainda, alguma distribuição das riquezas. Ahahaha. Ninguém, nunca, achou essas mercadorias. Quem tiver pra vender fica rico... ou morre.

- Mas que situação insuportável. Pelo que eu posso ver, da prateleira você já tirou até aqueles deliciosos idealismos e acalentadoras atitudes de conscientização, e colocou no lugar esses comodismos frios e desânimos bem coniventes.

- Pra falar a verdade, seu PhD, o senhor foi o primeiro a notar isso. E olhe que faz tempo que eu mudei tudo.

- Basta. Já que o que eu quero não tem saída, então vou pedir algo que todo mundo quer: dê cá cinco soluções paliativas e um conselho furado.

- Ah, finalmente. Sabia que daqui do meu estabelecimento o senhor não ia sair de mãos vazias. Pega as soluções: fazer um rico seguro de vida, blindar o carro, erguer o muro do condomínio, contratar um pequeno exército de seguranças truculentos e sedentos de sangue (daqueles que nem o “fanfarrão” famoso: psicopata e mal-feitor, tirando onda de justiceiro) e só andar pelas ruas da Europa.
O conselho: tape bem os ouvidos quando a bomba estourar.

- Ufa, agora sim. Me sinto como qualquer um nessa cegueira geral. Então, dane-se, seu Pouco Importa.

- Danemo-nos todos, seu PHD.

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