27 novembro, 2008

A ficção que vale um doutorado

Finalmente a sensatez começa a chegar ao meio acadêmico...



Prestigiados pelo mercado editorial, romances apresentados como teses em bancas de pós-graduação colocam em debate o gênero tradicional de escrita acadêmica



A tendência pode até ter antecedentes de luxo, como Friedrich Nietzsche e Roland Barthes, mas foi o mais recente prêmio Jabuti, entregue em setembro, que deu a ela uma visibilidade rara no país. Antes de virarem finalistas nas categorias romance e conto-crônica deste ano, três obras de ficção haviam passado pelo caprichoso ritual das bancas examinadoras, apresentadas que foram como teses de doutorado ou monografias de fim de curso em faculdades.

Os romances Rakushisha (Rocco), de Adriana Lisboa, e A Chave de Casa (Record), de Tatiana Salem Levy, são ficção da gema. Nem por isso deixaram de ser avaliados como ensaios acadêmicos na pós-graduação de conceituadas universidades cariocas, Uerj e PUC-Rio, respectivamente. Já Histórias de Literatura e Cegueira (Record), de Julián Fuks, foi uma distinta monografia de fim de curso em jornalismo, na USP.

Os três livros mostram uma ruptura flagrante de gênero, que está longe de ser desprezível. O modelo tradicional de escrita, produzido em áreas de conhecimento predominantemente acadêmicas, em particular nas chamadas ciências humanas, é de outra estirpe. É marcado pelo estilo ensaístico, tantas vezes formal, com discurso em geral em terceira pessoa, de todo modo fundado no rigor da pesquisa, na busca por evidenciar erudição e invariavelmente com respaldo em citações que, aos olhos de um leitor não-acadêmico, parecem mais interromper o fluxo de leitura do que outra coisa.

Nada disso caracteriza as três peças de ficção que se tornaram finalistas do Jabuti 2008. No entanto, todas foram chanceladas pelo meio acadêmico.

Flexibilidade relativa
É verdade que os casos atuais contam com o precedente ilustre do escritor Esdras do Nascimento, que em 1977 defendeu na UFRJ aquele que é considerado por muitos o primeiro romance-tese brasileiro, Variante Gotemburgo. O exemplo de Esdras, de criar um romance sobre a construção de um romance, orientado na época por Afrânio dos Santos Coutinho, notabilizou-se como um caso pioneiro, até então isolado.

O fenômeno atual, no entanto, pode ser indicador de uma flexibilidade inédita. Ela pode não ser propriamente a tônica majoritária em cursos de Letras ou Comunicação de todo o país. Mas mostra a disposição da Universidade brasileira - parte dela, ao menos - à experimentação que se propõe a retirar algo da poeira previsível que parece contaminar sua linguagem e aumentar o fosso entre público e academia.

Nesse processo, teses vêm adotando cada vez mais estruturas flexíveis e abertas, a ponto de, em alguns casos, flertarem com a classificação de ensaio literário, quando não a de descarada ficção.

- O fato de a academia estar menos sisuda em relação às suas teses é um fenômeno natural. Está havendo uma mudança, uma espontaneidade, que por sua vez está gerando trabalhos mais flexíveis - pondera Márcia Lígia Guidin, integrante da comissão do prêmio Jabuti 2008.
Tatiana Levy, autora de uma das obras finalistas (A Chave de Casa), acredita que a universidade, além de um espaço dedicado à transmissão do saber, também deveria pautar-se por experimentações. Ela conta que já havia completado mais da metade de sua pesquisa de doutorado quando resolveu apresentar um romance como tese.

- Eu fazia uma pesquisa sobre memória e legado, temas presentes no livro. Foi então que Marilia Rothier, minha orientadora, me sugeriu entregar um romance - conta Tatiana, formada em Letras pela UFRJ e que também fez mestrado na PUC-Rio.

Experimentação
Marilia Rothier, professora do Departamento de Letras da PUC-Rio, sugeriu à sua orientanda que em vez de uma análise, "algo que qualquer um faria", ela poderia escrever um romance, o qual foi seguido de um posfácio explicativo.

- Ela já estava propensa a escrever uma ficção, então insisti para que o fizesse - afirma Rothier, que tem percebido um interesse cada vez maior dos alunos por uma linguagem menos formal.

Tatiana Levy recorda que, enquanto concluía seu romance-tese, soube de pelos menos mais três outras teses sendo produzidas em forma de ficção, duas na Uerj e outra na UFRJ, esta orientada pelo crítico Silviano Santiago.

Resistência
Essa flexibilidade, no entanto, está longe de ser hegemônica na vida acadêmica brasileira e iniciativas do gênero ainda sofrem as resistências do meio.

Julián Fuks, outro finalista no Jabuti, era aluno da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) quando teve o impulso de escrever Histórias de Literatura e Cegueira como trabalho de conclusão de curso de jornalismo, em 2004. Fuks teve dificuldade para encontrar um orientador para o seu trabalho, que contou com liberdades em relação ao modelo tradicional acadêmico: forma narrativa, intertextualidade sem recorrer a citações explícitas e mistura de ficção com dados biográficos.

Embora constassem do projeto original, tais "desvios" em relação à norma acadêmica não tinham, de início, alarmado seu orientador. Até que Fuks lhe entregou a primeira parte do escrito. Diante do caráter experimental e pouco acadêmico do trabalho, o professor o aconselhou a abandonar o que já tinha feito e mudar o discurso. A solução de Fuks foi mudar de orientador.

- Desde o primeiro momento em que foi ganhando consistência em mim a idéia de escrever sobre escritores que ficaram cegos, eu sabia que o tema perderia muito se tivesse de atender aos moldes de um trabalho acadêmico convencional - afirma Fuks.

Incentivo
Para Adriana Lisboa, autora de Rakushisha, o trabalho de pesquisa e redação de sua tese de doutorado não encontrou tantos percalços, como o que Fuks sofreu. Seu orientador chegou até a incentivá-la a escrever um livro de ficção em vez de uma tese teórica clássica. Desde o início, Adriana tinha em mente a publicação do trabalho, pois já contava com uma carreira literária e cinco livros publicados.

- Essa abertura da academia a novos trabalhos é mais do que bem-vinda: é inevitável. Um trabalho de ficção, tradução ou um roteiro de cinema que seja criado com pesquisas na área de literatura se justificam perfeitamente como dissertação de mestrado ou tese de doutorado, sem nenhuma necessidade de prefácios ou posfácios para legitimá-los - defende Adriana.

A escritora-doutora não vê, na diluição das fronteiras entre gêneros, algo bom ou ruim, e sim uma possibilidade a mais aos escritores acadêmicos. Embora não haja um levantamento com estatísticas precisas sobre esse fenômeno, relatos sobre dissertações e teses que abandonaram o formato tradicional já não espantam o mundo acadêmico.

- Esse fluxo agora repentino de teses escritas como romance, refletidas no prêmio Jabuti, é uma expressão minoritária do que está acontecendo, mas nem por isso menos importante, porque de fato são títulos de interesse - afirma Jezio Hernani Bomfim Gutierre, editor-executivo da Fundação Editora da Unesp.

Fantasia
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a busca por novas formas e projetos de cunho pessoal culminou na criação de um grupo de pesquisas chamado DIF - artistagens, fabulações, variações. Junto ao programa de pós-graduação em Educação da UFRGS, seguindo a linha de pesquisa "Filosofia da diferença e educação", o grupo coordenado pela professora Sandra Mara Corazza discute não só o formato de trabalhos acadêmicos como também formas alternativas de expressão.

- Buscamos criar novas sensibilidades e novas maneiras de pensar, pesquisar, ler e escrever os componentes educacionais e seus correlatos. É preciso que o sujeito seja um bom artesão e também um esteta, além de um pesquisador de palavras, frases e imagens - afirma Sandra Corazza.

A professora encontra amparo no crítico e intelectual francês Roland Barthes (1915-1980) ao defender o "querer-escrever" dos acadêmicos, a vontade de personalizar um estilo, testando a fronteira dos gêneros de escrita. Haveria, segundo a concepção de Sandra, "fantasias de escritura" a serem contempladas mesmo por um texto acadêmico.

- Fantasias de escritura: uma força desejante, um eu produzindo um objeto literário, um objeto científico, um objeto curricular, formado ao ser escrito. Segundo uma tipologia grosseira, esse objeto pode ser um poema, um romance, um artigo, uma monografia, uma dissertação, uma tese, um currículo, um texto que diga como se deve educar uma criança, como dar uma aula etc. - afirma a professora.

A "fantasia", diz Sandra, seria como uma energia, um motor que poria em marcha a escritura, qualquer escritura. Advoga-se, com isso, para a árida produção acadêmica, o mesmo impulso de prazer proporcionado pelos textos mais saborosos. É o texto visto como um ato de amor. Amar, escrever, ler e criticar fariam parte do mesmo campo de ação, que significa, para Sandra, fazer justiça a quem estudamos.

Antecedentes
A idéia seria inspirada em Barthes. Considerado um pensador que ajudou a fundamentar as propostas de mudança de linguagem acadêmica, Roland Barthes produziu obras cheias de vigor e criatividade, imprimindo um estilo próprio à exposição de suas teorias. O saber com sabor.

No ensaio "Jovens Investigadores" (Jeunes Chercheurs, 1972), do livro O Rumor da Língua (Edições 70, 1984, tradução de António Gonçalves), Roland Barthes define as agruras dos cientistas iniciantes às voltas com a hierarquização do discurso acadêmico:

"No limiar do seu trabalho, o estudante sofre uma série de divisões", conta Barthes. "Enquanto intelectual, ele é arrastado na hierarquia dos trabalhos", mas, continua o francês, "enquanto investigador, está votado à separação dos discursos: de um lado o discurso da cientificidade (discurso da lei) e, do outro, o discurso do desejo, ou escrita".

O discurso do desejo ou escrita, ao qual se refere Barthes e cuja acepção a professora Sandra Corazza toma emprestado, é o desejo do registro livre, subjetivo, literário. Para os que defendem essa abertura, a questão é: se a tese acadêmica é o ponto alto da reflexão universitária, por que ela deveria seguir um formato fixo, cristalizado, em vez de espelhar uma experiência mais radical do pensamento?

Em contrapartida, a padronização que se deseja transgredir está ligada ao caráter universal do conhecimento, uma das premissas da Universidade, o que gera o receio de que a pesquisa possa se perder nos maneirismos e técnicas da arte.

José Luiz Fiorin, professor de lingüística da USP e colunista da Língua, vê com reservas essa transgressão:

- Está havendo uma mudança nos parâmetros da tese dentro da esfera acadêmica. A concepção científica vigente levava a uma ausência de marcas de subjetividade no texto, como o uso da 1ª pessoa do singular. Hoje, com o questionamento de um dado modelo de ciência, é usual a presença dessas marcas. No entanto, o abandono total do discurso científico traz consigo não uma crítica racional à ciência, mas uma descrença irracional na sua possibilidade. Isso significa a negação da ciência. Além do mais, nunca vi as tentativas de substituir uma tese por um romance, por exemplo, resultarem num bom romance.



Crise
Casos como os de Nietzsche, por exemplo, podem ser antes exceções históricas que confirmam a regra preconizada por Fiorin. Estaria no filósofo talvez a mais aguda percepção da crise discursiva da linguagem dos pensadores, embora outros filósofos, como os franceses Voltaire e Rousseau, também usassem da forma ficcional para desenvolver raciocínios e defender teses.

Uma nova maneira de sentir, uma nova maneira de pensar, cita Sandra Corazza, repetindo palavras atribuídas a Nietzsche. Assim Falou Zaratustra, escrito em 1884, é ficção filosófica de estirpe, baseada na idéia de que seria impossível denunciar os limites da razão usando para isso uma forma racional, argumentativa. A escolha de linguagem é entre a que imita o solar e perfeito Apolo, que não admite a mancha da vida dentro de si, e a que flerta com o estilo visceral e artístico de Dioniso.

Nietzsche desconfiava que só uma linguagem dionisíaca seria capaz de dar conta da denúncia aos limites da razão apolínea. Para pensar certos temas, seria preciso, antes de tudo, cantar. As teses que namoram a ficção parecem ecoar esse espírito. A constatação de que nem tudo é respondido apenas porque parecemos rigorosos e que, para um mundo de respostas tão incertas, a qualidade da pergunta pode valer tanto quanto a garantia dada por nossa resposta.



O desejo no texto acadêmico
Leia trecho em que o crítico francês Roland Barthes sugere modalidade de escrita mais vigorosa para o ensaio acadêmico

"O trabalho (de investigação) deve ser colhido no desejo. Se esse desenvolvimento se não realiza, o trabalho é moroso, funcional, alienado, movido unicamente pela necessidade de passar um exame, de obter um diploma, de assegurar uma promoção de carreira. Para que o desejo se insinue no meu trabalho, é preciso que esse trabalho me seja pedido, não por uma colectividade que entende certificar-se do meu labor (da minha pena) e contabilizar a rentabilidade das prestações que me consente, mas por uma assembléia viva de leitores na qual se faz ouvir o desejo do Outro (e não o controlo da Lei). Ora na nossa sociedade, nas nossas instituições, o que se pede ao estudante, ao jovem investigador, ao trabalhador intelectual, não é nunca o seu desejo: não lhe é pedido que escreva, é-lhe pedido, ou que fale (ao longo de inúmeras exposições), ou que "relate" (em vista de controlos regulares)."

Extraído de "Jovens Investigadores" (Jeunes Chercheurs, 1972), do livro O Rumor da Língua (Edições 70, 1984, tradução de António Gonçalves)



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