05 outubro, 2006

Resenha - Você está louco!

Imagem e texto por Solange Pereira Pinto

Estou louca, mas não estou só


Ele estava ao pé da escada. Vestido de preto. Meio gótico, embora despojado. Olhos verdes profundos. Sorriso enigmático. Eu pedia algo no balcão. Distraída. Perguntava se meus livros de filosofia estavam lá. Enquanto Luísa procurava, ele me fitava pelas costas.

Fui pegar um café e ele me encarou. Reconheci. “Você está louco!”. Não o via desde 1988, quando virou a própria mesa. Novamente frente a frente não resisti. Ele continuava silente me olhando. Dei um sorriso curioso. Estaria ali há muito tempo? Quais seriam as novidades?

Aproximei. Cumprimentamo-nos cordialmente. Lembrava-me muito bem daquela época, de suas palavras. Inusitadas (para a maioria), por sinal. Teria algo diferente a me dizer? Eu teria que arriscar. Ele era um sedutor, eu sabia.

Subimos as escadas. Seria uma longa conversa. Atualizar 18 anos de experiências e aventuras. Dedilhei. Olhei por fora e por dentro. Pensei, “eu topo passar minhas horas aqui com você”. Ele começou: “a vida que já vivi me levou a constatar que as respostas-padrão servem à manutenção da ordem existente. Servem para criar a sensação de controle, de ordem e de disciplina [...] São esses mecanismos antropológicos de conservação que impedem a mudança acelerada da sociedade”. Eu assenti.

Ricardo estava agora com 47 anos. Mais maduro, talvez. Casado com Sofia, teve um filho. Contudo, notei que continuava com a mesa fúria jovem. Um tanto arrogante, muitas vezes. Nasceu em berço rico, admitiu que foi um tanto mimado e que teve uma mãe superconfiante. E, ainda, um pai estrangeiro que lhe delegou (apesar da resistência inicial) viver a vida testando seus limites. Seria esse o motivo de tamanha persistência para realizar seus “delírios”? Eu me questionava.

Passamos o tempo com ele desfilando suas aventuras pelo mundo. Entrecortando as falas, lançava uns termos em inglês e muitas referências que jamais conheci. No entanto, continuava interessante. Queria saber até onde ele iria com seus devaneios.

Relembrou sua infância, adolescência, as notas baixas (ou suficientes) na escola, a banda de rock, o primo que protagonizou o woodstock, os investimentos prematuros, os ganhos astronômicos, a compra de multinacionais, as fusões empresariais. Perfilou por horas seus sucessos como empreendedor, os estresses, e suas viagens pelo mundo. Disse, inclusive, sobre “a rota de Marco Pólo” que realizou por meses, enfrentando dificuldades, guerrilheiros, adrenalina. Contou, ainda, que até político quase se tornou, escreveu peça de teatro, fez programa de rádio, foi colunista de jornal, professor, fundou uma escola “revolucionária” (Lumiar) e um instituto para se conhecer o verdadeiro DNA do Brasil; além das milhares de palestras que deu por diversos países e publicação de seus livros em diversos idiomas.

Ufa! Tudo em Ricardo é muito, é mega, é linha de ponta. Tudo que faz é inventado para ser o melhor. É assim que ele se constrói, costurando seu pensamento à existência. Para ele, inovar é palavra-mestre. A vontade de redesenhar o mundo é compulsiva, um vício. Enquanto ele falava, eu refletia sobre suas motivações, atitudes e obsessões. Mais do que isso, refletia sobre tudo isso em mim.

Sem usar relógio (que literalmente jogou no deserto), faz do tempo uma máquina de realizar sonhos. “Mais do que aprender a deixar o tempo imperar a seu modo, aprendi que a terra e seus habitantes são parte de um processo, sem inicio e fins claros [...] Lamentamos a falta de liberdade. Falamos muito sobre o quanto valorizamos nosso tempo livre mas raramente fazemos dele uma prioridade [...] as pessoas acreditam que o contrário de trabalho é lazer. Não é – é inatividade total [...] não conseguimos ver a diferença entre lazer e ócio. A sociedade ocidental é fortemente estruturada”, pontuou.

Durante a narrativa ecoavam palavras-chave. Democracia. Flexibilidade. Valorização de talentos. Educação progressiva. Idealismo. Autodisciplina. Respeito às diferenças. Persistência. Estudo aprofundado. Quebra de estruturas arcaicas. Cultura. Fuga de paradigmas. Formas inovadoras de relacionamento. Liberdade. Atualização constante. Leitura diversificada. Valores fundamentais. Objetivos claros. Certa cara-de-pau. Criatividade. Intuição. Afeto. Questionamento contínuo. Equilíbrio emocional. Crises e oportunidades. Ética. Auto-estima. Ousadia... Nem mesmo as palavras de ordem, os clichês, os jargões, o rol de nomes famosos, os estrangeirismos, o estilo “auto-ajuda” misturado ao de ficção e aventura, foram entediantes diante das linhas e entrelinhas que me eram reveladas em vários momentos.

O “papo” ia bem. Fluindo. O que realmente me impressionou foram os toques de humanidade que vez por outra pausavam seu discurso. Identificação? Talvez. Dizia ele ao longo do nosso encontro: “Eu ainda teria que muito aprender sobre business e, especialmente, sobre pessoas [...] muitas batalhas campais e muitos gladiadores depois, concluí que precisaria escolher um lado, uma filosofia, um jeito de ver as pessoas no mundo do trabalho [...] quem possui muito precisa devolver quase tudo para a sociedade, e ficar só com um pouco parar si [...] por que quero ser lembrado? Comecei a ler os epitáfios com um novo olhar [...] vivi as seduções da vaidade, poder e auto-imagem que povoam os epitáfios. Demorei a entender que essa onda era momentânea e que as pessoas têm necessidade de líderes carismáticos, que representam o que elas querem, e não necessariamente o que eles são [...] qual a essência do que fazemos e falamos? Quanto é conversa fiada, o famoso bullshit que tanto desenvolvemos? [...]não existe nada mais permanente do que uma solução provisória”.


E, continuava “a visão de milhares de chineses comunistas e ateus e mulçumanos rezando cinco vezes por dia em direção a Meca, nos deu uma idéia da diversidade que a humanidade nos proporciona, e que desconhecemos [...] nossa viagem ao Oriente tinha terminado como começou – com perplexidade, curiosidade e um espanto à nossa ignorância de como vive e pensa metade da humanidade [...] o mundo tem uma abrangência que engana a quem se enamora do próprio umbigo, como eu vinha fazendo [...] a disciplina de simplificar tudo e manter o olho no alvo é suficiente [...] se você fizer cara de salvador da pátria, o povo acredita. Com o passar do tempo, você mesmo começa, infeliz e morosamente, a acreditar [...] vamos nos anestesiando aos poucos, aprendendo a passar por barracos precários sem sentir nada, chacoalhando a cabeça ao ver gente morando debaixo de viadutos [...] fácil se sentir orgulhoso de tanta auto-humanidade[...] estamos aqui para um teste. Descobrir o que é maior, nosso cérebro ou nosso ego [...] houve uma época em que eu topava tudo. Queria colocar em prática o que havia aprendido em todos os ramos, experimentar e aprender rapidamente [...] o que motiva é pensar em maneiras de incorporar mudanças previsíveis, burrices existentes – e revirar tudo [...] e pensar três vezes por quê”.

Foi divertido encontrá-lo novamente, uma espécie de “reciclagem”. Pude rever tanta coisa que já li e ouvi por aí. Um momento para distrair e pensar. O que sei é que Ricardo Semler (da empresa Semco) não enlouquece sozinho. Ele sabe disso. Para realizar seus grandes empreendimentos precisa da adesão fiel de muita gente e, dinheiro, contato, poder, é claro; somados ao seu idealismo e dedicada paixão pela mudança, pelo novo, pelo sucesso. Arriscar acompanhado parece sua tônica cotidiana. Como ele mesmo disse em algum momento: “melhor fim com susto do que susto sem fim”.

“Você está louco” (Editora Rocco, 2006, 255 p.) é relato. É biografia. Mais que bordão é a forma que Semler escolheu para marcar sua presença no mundo. Senti-me aliviada, afinal eu também estou (ou sou?) louca, mas não estou só. Isso é reconfortante.

3 comentários:

Anônimo disse...

Ricardo Semler é, sem dúvida, um dos grandes pensadores do Brasil.

Anônimo disse...

Acho legal quando um livro "pega" a gente. Bons são os livros que nos fazem refletir ou que nos modificam. Você soube externar o prazer da volta de Semler na sua vida.
Li o primeiro parágrfo há uma semana. Não teminei o texto porque o maldito telefone me obrigou tarefa urgente. Voltei hoje e fiquei surpreso com a sua atividade intensa a frente do teclado.

\o/ disse...

Oi Roberto! pois é, o livro foi bom sim, li rapidinho, numa sentada praticamente!
quanto à produção, tenho me "obrigado" (como dizia Kierkegaard) a não passar um dia sem escrever pelo menos uma linha (rsss), o problema é que acabo escrevendo um monnnnnnnnnnnte de linhas!!! espero que goste dos outros textos tbm! bjao e volte sempre que quiser, será muito bem-vindo!