18 agosto, 2006

Agora há tempo

Imagem: tela de Van Gogh



No ralo escoa-se o restante da espuma, ainda quente. O sangue corrido da vivência em papéis tais se tumultua nas veias do silêncio, da quietude. A coluna sinuosa estraleja ao sobressalto do descansar. O ritmo do bombeio dissona assaz em notas desafinadas de preguiça livre. A boca seca das palavras desditosas engole pálida o pavor ermo. Na fumaça da chaleira de pedra se descreve o passado do cheiro quente de pão pontual. Está lá no cinderol, o chinelo surrado desencontrado de atitudes arrastadas. Nos fios brancos do espelho bacento um olhar arrugado não mira mais. Deitados nos tabuleiros os quitutes amassados já não esperam por bocas gulosas. A fornalha acalora a saudade dos cristais traquinados. Cortinas alvas esvoejam adornadas de bainhas meticulosamente prendadas, espreitando a vidraça gélida que soprou em dúvida raios matinais. Não há hoje cantoria para a escuta entretecida, suas conchas só calam vozes inéditas de outros cantos. As mãos tremediças espalmam a face dos desejos empoeirados, perdidas no cerzimento daquilo que falta de vida a costurar. Encostada na treliça do balanço arfa-se de ares à volta do ponteiro maior. Incrédula expira sua febre escarlate numa longa risada.


por Solange Pereira Pinto (2003)

Um comentário:

Anônimo disse...

O que vou dizer? Muito bom!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Tive um aula de como escrever bem e poteticamente.