28 julho, 2006

BOEING-BRASIL

Em caso de despressurização...
Há saídas de emergência sobre as asas...



Brasília pode ser lembrada por seu avião com assentos de primeira classe, executiva e econômica. Diariamente se luta por vagas na terra seca do planalto central e no Brasil continental. Contudo, em época de vacas mirradas, socialmente falando, e de um povo sedento por um leitinho, há uma disputa que envolve milhões de “gentes e dinheiros”. Esse fenômeno competitivo é aparentemente salutar, se visto pelo ângulo da tentativa democrática. Mas...

As vagas “da hora” são as de primeira classe. Aquelas bem perto do piloto, do comando, onde há o serviço de bordo com requinte, champanhe, pratos e talheres de verdade. Com direito a sobremesas de renomados chefes.

Mais de dez candidatos por vaga é a estimativa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para o preenchimento das 513 vagas da Câmara dos Deputados para este ano. São Paulo lidera a lista com mais de mil candidaturas e o Acre está na lanterna com 51.

Para o Senado Federal, onze candidatos concorrem no Distrito Federal por uma única vaga. Em todo o país, 225 candidatos concorrem a uma vaga no Senado, que este ano terá um terço (27) de suas 81 cadeiras renovadas - uma para cada estado. São Paulo é o estado que apresenta o maior número de candidatos, 19, seguido pelo Rio de Janeiro, com 17 candidatos. Acre, Tocantins, Amazonas, Espírito Santo e Rondônia apresentam o menor número de candidatos: cinco por estado.

Na comissaria de bordo tem gente disputando as partes nobres do avião. Do que servirá ao piloto até o que empurrará os carrinhos de bebidas e salgadinhos, são 208 concorrentes. Ser governador é uma boa pedida, e os candidatos estão convictos de que sabem todos os procedimentos de emergência em caso de pane (embora alguns sejam praticamente analfabetos).

Já a vaga de piloto da aeronave é disputada por apenas sete candidatos, o que prometer uma decolagem de às, sem muitas turbulências durante o vôo, e melhor pouso, talvez conquiste a insígnia de Presidente da República. Tem até gente oferecendo céu de brigadeiro como se possível fosse (parece que para competir a esse cargo tem que ser meio deus, meio santo).

Na parte traseira do avião, estão os lugares reservados para as vagas das assembléias legislativa e distrital, são mais de 13 mil candidatos. As restantes, da classe econômica, ficam para os outros afortunados, que ainda possuem alguma condição de disputa e barganha. Lá estão alguns profissionais e outras categorias.

Na busca do bilhete, que garante a vaga no vôo, estão palmo a palmo disputando – nos balcões de negócios – assessores, cargos comissionados, ministros, presidentes de estatais, banqueiros, empresários. Uma gama imensa de indivíduos tentando garantir sua viagem paradisíaca.

Enquanto se decide a lotação do boeing-brasil (enferrujado e sem manutenção), outras vagas são pleiteadas nas imediações. Longas filas se formam. É a plebe que mantém motores, troca o óleo, conserta turbinas, faxina os carpetes das orgias, limpa os banheiros, carrega as malas, abastece.

Lá estão, bem abaixo do horizonte, disputando vagas em hospitais, com alto número de candidatos por leito, internação, consulta, transplante. Outros competindo às vagas da aposentadoria. No fosso, as vagas para matricular crianças nas escolas públicas são concorridas quase a tapas, madrugada adentro. Vagas para emprego, vixe, melhor nem falar.

Há, também, outras buscas por vagas. Neste semestre, por exemplo, o curso de medicina teve uma demanda de 82 candidatos por vaga para o vestibular da Universidade de Brasília, seguido pela disputa de 45 em Direito e 26 por vaga para relações internacionais (faz-de-conta que todos os formados terão emprego depois).

Da mesma forma, em Brasília, os editais de concurso público são assediados por grande parte da população que clama por “estabilidade” e “bons salários”. Cargos de fiscais, técnicos, auxiliares, do nível fundamental ao superior, burocratas de toda espécie, transformam-se em sonho de consumo. Vagas nos estacionamentos nem se fala.

Se, por um lado, durante todo o ano (principalmente nas últimas décadas) vagas e mais vagas são disputadas para a sobrevivência das famílias que nunca entraram no avião, por outro os passageiros cotidianos não querem largar seus lugares numerados. Pleitear uma vaguinha mandatária pode garantir uma estabilidade financeira por várias gerações, basta olhar os clãs Sarney, Magalhães, Siqueira, etc.

Dizem que para se preencher uma vaga existem critérios. Para o vestibular se observa a capacidade de decoreba (ou no caso das particulares a capacidade de pagar a mensalidade); nos concursos públicos a habilidade de fugir de pegas (ou de comprar as provas); nos hospitais a premência da morte (ou ter uma boa rede de relacionamentos). Mas, quais os critérios para preencher uma vaga eletiva? Existem critérios para se lançar um candidato pelo partido a, b ou c? O que se mede na disputa eleitoral? Carisma? Popularidade? Experiência? Compromisso? Ética? Calibre financeiro? Ou vale mesmo é a cara-de-pau para vender ouro de tolo?

Em tempo de centenário do 14 Bis, de Santos Dumont, os brasileiros – tão bons e competentes avaliadores – exercerão sua cidadania (talvez fosse melhor e mais real escrever sidadania), com mais bis, escolhendo os integrantes do esquadrão (ou esquadrilha?) pelo aperto de mão, palavras bonitas e rosto simpático.

Mais uma vez, estarão espremidos na cerca do aeroporto eleitoral milhões de brasileiros, com seus olhares miúdos e vestes rotas, mirando (hipnotizados) a sofisticada invenção que voa tendo peso maior que o ar, acenando mãos e bandeirinhas, assistindo ao espetáculo.

Sequer imagina, a maioria da platéia, que o avião pesado, sucateado, contrabandeado, desgovernado pode cair a qualquer momento na sua cabeça, e que nesse momento os tripulantes e nobres passageiros (certamente) já saltaram de pára-quedas, ou fizeram outra conexão, e que sair dos escombros pode ficar cada vez mais difícil. Alguém sabe onde fica a descarga do avião?


Solange Pereira Pinto, diretamente do Pico da Neblina.

Um comentário:

Anônimo disse...

Haja metáfora... Neste vôo, em 2006, eu não embarco, Sol. Cansei. Tô na Lucidez.